Castelos e calabouços

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Na sacada de casa, é ano da copa. Pessoas dentro de casa, escuto o coro do gol trespassar paredes, entoar canto e união. Atrás do vidro, se reúnem, televisão ligada em cores e luzes, o telefone ainda vivo tocando e exclamando que o mundo seria verde e amarelo até que não fosse mais. Vejo o que nubla, a rua larga que sempre se estendeu ao pé do morro e os carros que nela correm não sabendo que é ano e que é copa. Vão pra algum lugar sem televisão, sem família, sem criança na sacada se olhando e escutando da boca do outro a exclamação que obriga: olha, é a felicidade!

Gol é gol, e a terra do morro brilha feliz.

Pai chega de carro, me vê na sacada. Tuntun está no quarto, mãe no trabalho. Corro pra fora, chuto a bola como se o quintal fosse o mundo e o morro gritasse por mim. Pai sobe bufando, as pálpebras que muito piscam e sorriem. Espio ele indo pro quarto, dando a volta da chave e no respiro fundo que não assisto. Imagino, de pé na bola, Vilmar me vendo do fundo da floresta com cara chupada de macaco, os braços largos estendendo-se ainda mais compridos pra ver se chegam no céu e na súplica de deus. Mas deus vê a copa, vê lá da sacada da terra e treme, de mãos no volante como quem deve, por descobrir que na verdade não é assim tão justo. 

Sei de duas rezas que Vilmar poderia testar, porque ano pra cá depois que Sião se foi, tive amigos imaginários sem o rosto ou o compromisso de serem reais. Eram humanos, de carne, osso e zombaria. Não diziam palavra, porque isso era coisa de animal que existe, mas aprendi a rezar de mãos juntas pra pedir que ao menos eles não sumissem. Se Vilmar imaginasse, deitasse na cama da infância e talvez falasse ao céu que não queria ser macaco que o tempo dobra, que queria ser imaginário, que bastaria pra sempre ser lembrado com a mesma cara e o mesmo corpo, então talvez não tivesse a kombi, vizinhos de olhos tampados e a obrigação de se tornar algo que não queria. Não teria a boca que exige que o mundo se resolva, e nem a criança que a escuta sem saber o que é medo e admiração.

A segunda reza seria pra saber, e isso bastaria.

Eu não veria então assim o pai, com tanto querer. O pai, aquele lobo enorme com presas que mentem pra que Vilmar ficasse longe, morto aos olhos, precisava estar longe do escritório, longe de Vitória, da minha mãe e de casa. Para isso, sonhava com o martelo do macaco, com a fúria que eu desferia o golpe, mas nunca com o sangue que escorre ou o pelo que molha. Sonhava até onde eu ainda tinha pai pra que não ficasse sem.

Na sala, olho as fotos que se misturam às garrafas de bebida. Uma dele quando criança, com meu rosto, pendurado às árvores com uma boca de lobo que sorri. Outra de nós pescando, eu e Tuntun em um barco parado que não vai nem desembarca, e outra com minha mãe jovem de pelo de raposa cacheada com um rosto que acalma — cruza o tempo pra dizer que está tudo bem, ainda que seu rosto não era de mãe, sua felicidade emoldurada não quisesse a minha. Mas ela sorri, diz que o que preciso fazer é o que preciso fazer e isso sim basta. Porque é copa, é grito no morro e também é história que preencho na ausência.

Escuto mãe dizer atrás das suas sardas e da distância que via a copa quando pequena do colo de seu pai, ainda com o mesmo bigode de hoje, rindo da cerveja e da companhia. Era bom, ela diria, e eu escuto como se dissesse mesmo. Há o que nos divide, e nada é dito. Eu quero o avô, o tempo da preguiça e de tudo que não havia visto. Tempo de um rio que não corria e mostrava, com sua água, o espelho do meu rosto que não envelhecia. Passo os dedos no pelo procurando sarda, onde com certeza se cristaliza a memória. Tudo em silêncio, tudo pras paredes que me viram crescer e pro desejo de que no fim daquilo eu me lembre do tempo que era ter pai que não machucasse os outros.

Bato na porta de Tuntun e ela ri no quarto, com os olhos no computador, digitando e combinando coisa com quem não lembro o nome. Ela gostava de ir na casa das ovelhas, se encontrar com suas paixões e ficar de namoro livre no campo, o riso misturado aos balidos. Eu que era irmão de segredo, tudo bem guardava. Mas hoje era copa e era dia de Vilmar e a segunda reza na ponta da língua, então precisava cobrar de voz trêmula: preciso que vá ao pai com choro e diga que a vó ligou desesperada que o vô está muito ruim, com cheiro de fim.

Tuntun reluta, mas conhecemos nossos segredos.

Escuto o seu latido baixo, chorado, e o pai correndo e batendo a porta atrás dele. Da porta do meu quarto, acho que o seu pelo cinzento fica lindo quando corre com medo. Não seria suficiente dizer que era minha mãe que estava mal, esconder Tuntun ou dizer que a fábrica de portas estava ao fogo. Tinha que ser algo antes de nós e da terra do morro — algo que fosse sarda sua, lembrança de uma foto de um lobo preto e branco no pé da árvore. Precisava que ele fosse agora minha imagem e semelhança, reduzido ao pelo de uma criança que chora com medo de alguém na floresta.

Pai no telefone, disca de dedos nervosos e xinga aos gritos quando erra o número. Grita, e os vizinhos na copa gritam de volta. Tuntun ao seu lado soluça e diz nada com nada, começada com choro fingido, continuando com choro que se torna verdade. Vou quieto ao escritório, a porta batida sem a chave trancada. Abro com os olhos pesados, as mesmas sobrancelhas cerradas do dia do caminhão da mudança. Era preciso ver, Vilmar disse, e eu vi.

Era o escritório que lembrava, mas em outra casa. As prateleiras de livros em que descobri o que é ler, as cortinas cerradas. O brilho azulado do computador iluminando como se uma janela virada para um mar doente. Babo enquanto procuro por tudo, os olhos cheios de lágrima, tossindo e mordendo a desgraça de Vitória não estar à mostra com os olhos grandes, suplicando ajuda como em minha fantasia. Procurei embaixo do beliche, atrás das estantes, coisa que fosse na escrivaninha. Há nada. Olho para os livros e um se destaca, brilhando, sugerindo segredo, como se no menor puxão de um deles surgisse uma sala secreta, um porão de correntes, de limo nas escadas e das paredes que escurecem pra se abrirem à luz de velas e do choro de alguém preso! 

Me aproximo vacilante, arranco o livro da estante e... silêncio.

Nada.

Escuto o pai uivar da sala, e sinto o arrepio de ser uma presa. Penso que fui burro de acreditar em Vilmar, no macaco velho que diria qualquer coisa pra continuar na cabana, à salvo em suas rezas. 

Um soluço. Claramente um soluço que preenche o quarto denunciando o choro. Meus olhos se arregalam e tateio o chão atrás de piso oco que revelasse o alçapão, batendo com o nó dos dedos e colando a orelha no piso que tudo guardava. Varro o quarto até escutar meu pai gritar com Tuntun sobre sua mentira. Não há mais tempo e começo sussurrar pra Vitória que a escuto, que sou eu e não o pai que a prende. Ela soluça de volta. Abano o rabo e digo que agora tudo ficaria bem.

Soluço. Soluço. As presas se escondem na boca. Algo no computador pisca. Ando com passo morto. É só o computador que chora. Clico e naquela luz fantasmagórica se abre uma foto, algumas mensagens. É uma mulher que não é minha mãe, sorrindo, lábios vermelhos. Leio palavras que ele nunca disse para ela, o desejo de se encontrar e a mulher o respondendo com amor. Falam de um lugar que não é aqui, um em que a criança que meu pai foi, rezou certo a primeira reza e viveu a vida de acordo com o perfeito, sem precisar um dia mudar. Entendo o que minha mãe disse sobre não ter só dois lugares no mundo e esqueço de Vitória. 

Não há preguiça, não há motivo pra porta estar fechada.

Pai entra aos latidos, me ergue e joga para o outro lado do quarto. Olha para a tela,  o segredo a céu aberto e uiva. Apanho primeiro por saber, depois por continuar quieto.

Lembro dos meus amigos imaginários, fecho os olhos e rezo.

Primeiro, papai do céu e de tudo que se imagina, não deixe a terra que bate, a floresta que me olha se acabar.

Segundo, proteja minha mãe, minha irmã, proteja quem existe e quem não existe. Nos proteja de você e do que crias.

Terceiro, me deixe pelo menos com o medo, quando ainda sabia o sentir. Quando ainda era ano da copa e o roxo do corpo se tornasse verde, amarelo, até não mais ser. Não me deixe ao relento, assim ao chão do quarto de olhos em qualquer lugar, escutando o grito dos vizinhos que comemoram. Me deixe ao menos triste, ou qualquer coisa que me lembre que o mundo é real demais pra ficar de portas abertas.

Assim seja, amém. Dormi, sem choro, sem soluço. Olhos fitando a parede, o rosto ardendo. São as sardas que me crescem, penso. Finalmente, a memória que lembro.

A cidade em que não existo maisOnde histórias criam vida. Descubra agora