Vermelho, azul

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"Era Vitória o nome da criança", mãe disse ao pai que não escutou, mas eu, no quarto, agarrei aquele nome como se meu. Acolhi-o nos braços, fiz carinho, o pus para dormir. Escrita no caderno, ela parecia não ter sumido. Devia só estar com medo das pedras de Ivan ou assustada com o futuro, afinal seria uma jogadora de futebol e alguém precisava o ser agora que Sião não estava por ali, e essa era uma carga grande demais pra qualquer não-Sião como nós.

Contei para a mãe (e Tuntun que grudava a orelha na porta do quarto) de como tinha sido o dia em que a preguiça sumiu. Disse que a conhecia, falei da sua escola e de como ela estava preocupada com a irmã doente e esperava que ela voltasse logo. A mãe deu um abraço quieto e soltou um suspiro triste de preocupação. Tuntun latiu do quarto que eu vi algo na floresta e mordi a boca irritado. Logo veio: proibido sair de noite. Assim que a lua voltasse, eu também o faria, sob vigia juramentada da minha irmã. Rosnei que era idiota um lobo ter que ficar dentro de casa à noite, mas ela riu que era lobo coisa nenhuma, e sim um cachorro-filhote bonzinho.

De discussão vencida, parte de mim estava feliz de não precisar olhar pra floresta sem parede que me guardasse. Fechava as cortinas às noites e assim ficava até a próxima, esquecendo que lá fora é assim. Aos poucos o fervor das guerras de pedra voltaram e Úrsulo também. Protegíamos um ao outro e provocávamos Ivan, deixando ferver o passado até que evaporasse em um misto de coisa qualquer. Fingimos tanto a lembrança que ora íamos esquecendo volta-e-meia de Vitória, até que caíssem os olhos na preguiça-caçula Nádia e a ausência risse presente.

Após os treinos, mãe me fez prometer que eu ia direto pra casa. E assim fui, de conversa com Úrsulo, que também vivia sob olhares atentos. Não demorava até que sua mãe aparecesse na porta de casa, de olho na terra do morro e gritasse pra vir logo pra dentro. Mais carros de pais apareciam agora no estacionamento para buscar os filhos, menos crianças corriam as quadras, guardadas em algum armário de suas casas. Depois daquela tempestade, me parecia que mais pessoas haviam sumido, ainda que não soubessem. Até Valmir, que sempre estava entre um cigarro e outro no meio do sorriso, tossindo e cuspindo na pedra gasta, já não se via em canto algum. Tinha fim-de-semana que o via martelando em casa, o rosto de macaco molhado do suor, o corpo curvo das dores. Dava um oi e pedia para entrar, mas ele balançava o martelo de rosto arregalado e me mandava embora.

Enfim a estranheza se cobriu. Numa tarde de sábado solto, telefone tocou e mãe correu para atender. Falou minutos que iam e desligou com o olho na janela. Disse pra eu aprontar uma bolsa, arrumasse mudas de roupa, escova de dente, pegasse meu travesseiro e uma coberta. Riu de sorriso largo demais que eu ia para um acampamento com Heitor e seu pai na beira de um lago, numa cidade de difícil nome. Lati toda a casa de felicidade e nem meu pai abriu o escuro do escritório pra reclamar. Senti que os dias finalmente me pediam desculpas e davam notícias que só caberiam no peito se eu me livrasse de algumas tristezas.

Pulei no carro, abracei Heitor e fomos cantarolando estradas desconhecidas, janelas abaixadas, sol que entrava e se sentava ao meu lado. O pai de Heitor, Émerson, era um porco-espinho de camisa de botões bem arreganhadas, olhar tranquilo e voz que contava piadas demais. Segurava uma latinha de cerveja entre as pernas, prendia o cigarro entre os lábios apertados. Olhava muitas vezes pro filho, que de pescoço comprido de avestruz, ia com a cabeça pra fora da janela.

Passamos pelo sol até que tudo fosse nuvem. Plantações de arroz começaram a alardear a estrada, o asfalto cedeu e continuou como terra empoeirada. Continuamos até uma vila de moinhos de madeira escura, pás enormes girando em um devagar rumo, relâmpagos ao longe. Émerson guiou o carro até uma floresta de pinheiros altos, à beira de uma lagoa gigantesca onde não se via fim e pôs um segundo cigarro na boca, sem ter terminado o primeiro.

Eu e Heitor cuidamos de montar a barraca, embora nada soubéssemos, enquanto o pai ia de vara pra beira da lagoa, sentar-se no silêncio e pegar nos sonhos peixes de memórias. O resto da tarde aconteceu entre as risadas. A cada tentativa de pôr a barraca em pé, mais minha barriga doía e as maçãs do rosto ardiam. Vendo Émerson, soube porque Heitor era tão engraçado, ainda que pra mim o seu bico de pássaro nada precisasse dizer pra achar o mundo bem melhor.

Montamos a barraca e, na boca babada do pai dormindo, trocamos o cigarro não aceso por um galho sujo. Brincamos à beira do lago de jogar pedrinhas quicantes e procurar por peixes. No reflexo trêmulo do dia nublado, não vimos na lagoa a imagem de Sião, de Vitória ou de Tarcísio. Vimos um avestruz e um cachorro nos encarando de volta com cara de bobos, e isso bastava.

À noite improvisamos uma fogueira pequena e descascamos peixes atrás dos espinhos. Émerson sabia algumas histórias de terror boas o suficiente para que eu pedisse que Heitor me acompanhasse até um canto da floresta, onde eu ia inventava rápido demais um banheiro, na distância certa entre a vergonha da barraca e o medo das mãos que podiam vir da lagoa. A tempestade chegou no meio da madrugada, quando o vento derrubou pinhas nas paredes de pano fino da barraca em uma chuva incessante. Aterrorizado que a lagoa poderia subir durante a noite ou uma árvore nua fosse atrás de todas as suas pinhas e despencasse sobre nós, passei boa parte da chuva acordado, a bexiga cheia demais do medo e os ouvidos abarrotados dos roncos idênticos de pai e filho.

Amanheci cansado, de costas molhadas do chão úmido da barraca e o corpo cheirando a roupa guardada da chuva. Émerson bebia com os pés na lagoa, reclamando do sinal do celular que não chegava na floresta. Heitor, sentado no chão, estava bravo e com fome. Nos divertimos tentando pegar peixes e brincamos entre as árvores, chafurdando o pé no chão lamacento. Entramos no carro esquecido e pulamos dos bancos da frente pros de trás, até que o sono da noite caída me viesse e me derrubasse ao sono com o rosto no volante.

Acordei com o barulho do carro, o olho esquerdo assustado e o direito ainda dormindo. Estava deitado no banco de trás, e Heitor me olhava com o riso pronto. Viajamos cantando músicas do rádio, entre o azul do céu que se lembra dia e o esquecimento do que é cotidiano. Tudo era tão bom que Heitor pegou a caixa de cigarro do pai e jogou pela janela, sem se importar com o resto da estrada levando bronca. Fumaça que subia, que ia embora.

Chegamos com a noite na terra do morro. Subimos as costas da cobra com o rosto grudado no vidro, o rosto vermelho e azul das sirenes. Vilmar estava na frente de casa com o rosto cansado, o martelo longe das mãos. Desci do carro e quis olhar na rua, mas Émerson me empurrou com os espinhos pra dentro de casa e minha mãe me recebeu de abraço apertado. Dei tchau para Heitor sem ter terminado de rir do dia e fui dormir com gosto de imaginação, confundindo a quentura do sono com a de uma fogueira qualquer, escondida na floresta de pinheiros, à beira de uma lagoa sem nome.

Naquela noite sonhei que eu e Vilmar estávamos lado a lado, ao pé da floresta, olhando para ela. Era noite, a tempestade vinha. Dentro dela, Heitor e Émerson nos olhavam de volta. Acenamos, e acordei.

A cidade em que não existo maisOnde histórias criam vida. Descubra agora