A casa de Vilmar continuou fechada. Almira se via entre as cortinas, às vezes, de olhos na rua que caía, os olhos que observavam. Os pregos haviam rezado e os barulhos de martelo haviam partido para onde não se bastam orelhas, cheias de palavras, e as mãos gastas do trabalho de uma vida toda. Sonhava com Vilmar, suas rugas. Namorava sua kombi nos dias de saudade e a enferrujava de tanto ficar ali a olhar.
Mãe visitava Almira com frequência, para falar de coisas de portas fechadas. Meu pai dizia que Vilmar era bom e eu concordava de boca cheia. Pai agora fazia caminhadas e perguntava se eu queria ir junto. Ia envergonhado de não querer, como se responsável por mostrar praquele lobo como era o mundo lá fora do escritório. Havia muito silêncio, respiração pesada, sobrancelhas baixas. Éramos parecidos na quietude, ainda que as palavras que não vinham pareciam morar em lugares diferentes. Mas se escapavam, algo elas tinham que fazer. E isso nós dois sabíamos.
Num dia de funeral, andamos até o cemitério, próximo do ginásio e logo atrás da nova estação de energia da cidade. Escondiam o velho com o novo, meu pai disse e parou de correr. Vimos as pessoas andando e chorando, passo com lágrima. Ao lado de muita gente, a preguiça-mais-nova Nádia ia com cabeça baixa, sem saber como chorar. Pai não ofereceu pra se despedir, e eu também não sabia como. Tinham desistido das buscas de Vitória e seu rosto ficou para as fotos, o jornal e a fábula que ia de boca em boca.
De lá, do outro lado de uma rua que não cruzamos, pai disse que devíamos ter medo dos vivos e não dos mortos. Escutei como se ameaça e temi por tudo que era vivo também. Patas na rua, não sabia se era assim tão lobo ao seu lado. Parecia mesmo uma raposa, pronta pra fugir.
E fugia. Na escola, Heitor fazia rir as pessoas. Eu era confortável, não incomodava. Ainda assim, Tarcísio batia, diminuía. Ao seu lado, o sapo Caio era pequeno demais, mas tinha a boca grande como de ninguém. Encontrou dentro de si palavras más e dinheiro demais nos bolsos. Dizia que um dia ia voar e cuspir na cabeça de todos, e nós aqui na terra só saberíamos do seu rosto se ele quisesse pousar. Conversava como se doasse, fizesse um favor. Com o tempo, aprendi a gostar muito menos de sua língua de sapo que da pata da girafa.
Roberto, o gambá que tanto me desentendi no começo da escola, já não aguentava seu amigo Caio. Ficou, por acaso, perto de mim e, como eu não sabia as palavras más do sapo, ali ficou. Brincávamos mais e mais, até que não visse Heitor tanto assim. Sentia falta, mas a memória era estranha. Andava com Úrsulo no ginásio, ria com Roberto na escola. Era o passado que se misturava com algo que eu não tinha controle. Não sabia de Sião, sumia Heitor, e às vezes, antes de dormir precisava rezar como a mãe queria, pedindo pra deus que eu não fosse alguém de coração que só vai embora.
Um dia, Roberto começou a fazer aula de violão e me convidou para ir junto, lá na cidade. Mãe gostou da ideia de música em casa e disse que agora eu era cachorro de perna sabida que podia ir sozinho de bicicleta. Parei antes na casa de Úrsulo de palmas pras janelas, gritando pra que o urso se apressasse e tentasse esse tal do violão junto comigo. Ele veio chorado, vermelho por baixo do pelo branco, de capacete na cabeça e os dentes de como quem tem ideia boa. Disse que precisava de mim, que o mundo podia desistir de Vitória mas nós dois íamos descobrir onde tinha parado nossa amiga. Era só refazer o caminho da kombi depois do ginásio naquele dia que acharíamos algo, ele riu e me puxou. Soltei o braço e disse que não queria fazer isso, que tinha visto o cemitério com Vitória e que estava com medo demais dos vivos pra ir buscar por ela.
Úrsulo disse, como quem descobre, que eu também havia desistido.
Fui de bicicleta correndo pela rua de asfalto gasto e céu azul demais, com gosto amargo na boca e a cabeça pensando que se Roberto agora gostava de mim, mais gente no mundo podia aprender a gostar também.
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A cidade em que não existo mais
Misteri / ThrillerCanis conta sobre quando se mudou, sobre amizade, morte e o espaço entre tudo que há e a floresta em que nada resta.