Para onde vai?

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Sem Sião, eu e Heitor ficamos soltos à tempestade do céu da boca de Tarcísio. Ele rugia ao trono, sozinho nas aulas de educação física sem corpo que o desafiasse a qualquer coisa. Ali, numa cidade em que se mede o mundo pelo tamanho de campos de futebol, a lei duma sala de crianças era estabelecida na força e na voz de quem falasse mais alto.

Eu, convicto quieto, havia encontrado nas saudades um motivo pra chutar a bola sozinho em casa, distraído enquanto pensava em que caminhos minhas historinhas tomariam. Meu pai, da janela de seu escritório, me via ali no quintal com olhos de orgulho, dizendo à mesa que eu finalmente começava a ter as formas de uma criança. Prometeu a si mesmo que iria me matricular na escola de futebol ali perto de casa e deixou minha opinião pendurada nos ouvidos. Então, no fim de semana, encontrou sagrado tempo pra virar a chave da porta, ensaiar sorriso ou dois e me levar pra escolher um uniforme de futebol, querendo, assim que chegasse em casa, passar toda a tarde me ensinando a jogar.

Amargo, tudo me lembrava a Sião e sua alegria distante ou a Tarcísio e seu descontento próximo. Fantasiado, olhei no espelho e disse que tudo estava bom. Pai escutou o que disse como quem ouvia uma torneira esquecida aberta, tentando descobrir curioso de onde vinha aquele som de estranheza, não reconhecendo em si o interesse do carinho ao ver algo pequeno que tinha a forma do seu rosto e sonho. Decidiu-se: abriu as despensas do coração, arriou as cortinas, testou as janelas e riu pensando que era isso, agora estava pronto. Passaram-se alguns minutos de alegria, mas de portas abertas, tudo que era o resto do mundo não resistiu e também tentou entrar ali. Furioso e invadido, voltou desgostoso pra casa, esmurrou a porta e passou a chave, sentando-se sozinho, ao escuro do escritório.

Eu, de uniforme e com a bola embaixo do braço, imaginei que os adultos gostavam de brincar de dizer coisas.

Mãe, de punhos bravos, pegou nossa bicicleta e falou pra eu pular na garupa. Fomos do interior do interior até o centro da cidade, cruzando ponte, rio e ruas de olhos nos dois lados pra chegar na biblioteca municipal. O pelo da mãe estava todo suado de carregar nós dois, as sobrancelhas baixas e os nós dos dedos brancos de tanto apertar o guidão. Era um prédio branco de chapisco surrado da poeira, os chãos de madeira gemendo a todo pequeno passo. Tinha poucas prateleiras de literatura, mas já era tudo muito mais do que sonhei em ter. Recebia um livro de aniversário desde que comecei a ler e, pelas minhas contas, precisaria viver muitas vidas pra que pudesse juntar uma prateleira daquelas.

Enquanto pulava e arrastava cadeiras pra poder olhar os livros de cima, mãe fez o meu cadastro na biblioteca e veio de sorriso quente dizer que eu poderia pegar dois livros toda vez que viéssemos visitar. Disse maravilhado que ali era um prédio que guardava os aniversários de todos e ela prometeu que se eu aguentasse os treinos de futebol e o que que fosse do pai, me traria todo sábado ali.

Cumprida promessa agora que tinha tido o gosto das páginas na língua, fui de patas na quadra, assustado com as crianças pra todos os lados. Abaixei-me ao canto, olhando os outros se perseguirem e rirem já de amizades esclarecidas. O teto alto do ginásio, as luzes brancas ligadas. Na arquibancada, pais conhecidos riam alto e dividiam cerveja da lanchonete escondida no canto escuro da quadra.

Corria quando era pra correr e resto do tempo pensava na biblioteca. A gazela que coordenava as crianças usava um boné branco e um apito pendurado na boca, repetindo tudo aquilo que não se podia fazer. Ao fim do treino, ela passou o cronograma dos campeonatos e dos treinos e me contou que aquele era o meu sonho ainda que não o soubesse. Desenhei muitas vezes ela no meu caderno e peguei costume de dizer não com o mesmo sotaque e rosto que ela fazia.

Nos fundos do ginásio, onde os olhos dos adultos não reinavam, havia um areião em que dormiam as ferragens de desfiles passados, abandonadas às ferrugens, como esqueletos de gigantes mortos. As crianças se amontavam pra tomar água gelada do cocho e molhavam-se umas às outras, secando-se nas camisas suadas ou catando uniformes pendurados no varal improvisado da gazela. Divertiam-se de pedras nas mãos, arremessando-as em todo pedaço de carne que sobrasse ao sol. Se dedicavam tanto a essa guerra à parte que o futebol com o tempo parecia apenas um detalhe. Descobriram que se mirassem onde as roupas escondem os roxos do corpo, os poupariam das broncas da gazela sobre as cabeças rachadas de sangue. A guerra não se bastou lá fora e entrou na quadra, onde andavam por aí em pequenos grupos, os olhos duros contando entre si para que não abrissem boca sobre o que acontecia em seus segredos.

A cidade em que não existo maisOnde histórias criam vida. Descubra agora