Celebração

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Acordar era sempre todo um novo desafio, até mesmo quando estava vivo. Pip podia não se lembrar muito bem de como era sua vida antes de ascender como um anjo, mas algo dentro de si o dizia que não era coisa boa. Toda vez que ele fechava os olhos era transportado para um mundo diferente, para um inferno diferente; ele era perseguido por lobos, plantas tentavam agarrá-lo, segurá-lo pelos membros e puxá-lo até que se despedaçasse por completo e não restasse nada dele além de pedaços de carne dilacerados. Às vezes ele via figuras humanas, assim como ele, correndo em sua direção com mãos gordurosas para puxar seu cabelo, arranhar sua pele, puxar suas pernas e marcar seu corpo com agressividade, deixando para trás uma série de hematomas e trilhas de sangue. Ele já não se lembrava mais da razão de ter aqueles sonhos, mas sabia que estavam lá desde antes de conhecer Damien e tudo que seguiu depois começar.

Não foram poucas as vezes em que Pip acordou chorando ou tremendo, os olhos arregalados em completo pânico e as vozes que gritavam com ele em seus sonhos ainda ecoando em seus ouvidos, bradando linguagem profana em uma língua que ele já não entendia mais. O que aconteceu comigo?, ele sempre se perguntava ao acordar, mas nunca conseguia uma resposta. Os mais velhos se recusavam a explicar sobre a vida humana - talvez nem soubessem como era a vida de Pip antes, ou não se importavam - e a memória do britânico começou a falhar muito facilmente com o tempo. Acordar era difícil porque ele sabia que nunca teria uma resposta para aquela pergunta.

Com o tempo, os sonhos começaram a mudar, distorcer-se, especialmente após conhecer Damien e principalmente após ser forçado a deixá-lo. Já não eram mais humanos que o perseguiam e sim demônios; demônios vorazes que não se contentariam apenas em dilacerá-lo, mas devorá-lo também. E era assim que o sonho seguia: Pip corria o máximo que suas pernas finas conseguiam ou voava com o máximo de força caso tivesse suas asas, mas nunca era o bastante. Eles sempre o alcançavam, sempre pulavam alto demais ou corriam rápido demais, sem dá-lo nenhuma esperança de fugir em paz. Uma mão enrugada agarrava sua perna e unhas grandes e afiadas enfiavam em sua perna e o puxavam para baixo, para um buraco repleto de outros deles, esperando que ele caísse para consumirem seu corpo e arrancarem dele tudo que lhe restava. Pip sempre lutava, tentava estapear os demônios com a mão e conseguir ganhar tempo para correr, enfiava as unhas curtas no chão, na terra, tentando desesperadamente impedi-los de arrastá-lo com eles, mas seus esforços sempre foram em vão. Eles eram mais fortes do que ele, as vozes eram mais fortes do que ele, e suas mãos acabavam cedendo e ele era puxado para baixo, a única coisa possível de ouvir antes de acordar em desespero sendo seu próprio grito.

Lágrimas escorriam do canto de seus olhos ao despertar e em muitos dias ele não conseguia conter o choro nem ao acordar. Encolhia-se em posição fetal e desabava completamente, esquecendo que outros podiam ouvi-lo.

Não era à toa que ele era conhecido como O Anjo Chorão entre os demais anjos do céu.

Como se já não bastasse não ter o controle de si próprio, sua autoestima e bom-humor decaíam muito com as provocações de seus colegas. Ao verem-no, riam e apontavam o dedo, chamando-o de mil e uma coisas diferentes como se ele não pudesse ouvi-los. Às vezes Pip se perguntava se ele tinha de fato acordado do sonho.

Talvez devesse dizer que dormir era uma tarefa pior do que acordar - se o problema fosse os pesadelos. Mas não era, nunca era. Seu estômago se embrulhava ao recordar deles ao acordar, sim, mas ser constantemente lembrado de que eles faziam parte de sua realidade era muito pior. Por isso Pip odiava acordar. Ele nunca sabia em qual inferno estava entrando.

Quando Pip não sonhava com nada, sonhava com algo ruim. Essa era a regra. Mas apesar de não precisar de fato dormir, além de para espantar a exaustão física, era o único traço humano que lhe restava, a única coisa de sua vida mortal que sabia como fazer, e não podia abrir mão disso, venham pesadelos ou o alívio de ter uma noite sem sonhos.

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