Terra

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Dormir não é um hábito que anjos têm. Anjos, apesar de não terem as mesmas necessidades que os humanos, possuem as mesmas habilidades. Eles não são incapazes de comer, beber, defecar ou fazer sexo, bastava apenas um bom uso dos milagres para ter todas as habilidades dos humanos na ponta do dedo. Isso era válido para todos os anjos, exceto para os de alma humana.

Apesar de lhes serem concedidas asas, os anjos de alma humana mantinham sempre um pé em suas origens. Não tinham necessidades como os humanos, no sentido de precisarem comer e dormir para sobreviver, mas ocasionalmente sentiam falta dessas coisas, uma nostalgia cruel que os lembrava do novo status quo ao qual deviam se acostumar.

Ainda assim, mesmo com essas diferenças, alguns anjos gostavam de engajar no ato de dormir para fazer o tempo passar mais rápido - afinal, não tinham como cumprir suas tarefas de noite, visto que todos os humanos estavam dormindo. Isso era especialmente comum entre os anjos da guarda, dentre os quais Pip fazia parte. Eles se reuniam em um pedaço específico do céu e se abrigavam em uma nuvem própria, que não seria utilizada para chuva, e a usavam de cama, colocando-a próxima às dos demais, para sempre se manterem em grupo.

Pip era o único que tinha sua nuvem afastada.

Não era por uma decisão sua, é claro. Nunca era uma decisão sua. Ele estava tendo pesadelos frequentemente demais e estava atrapalhando os outros a dormir. Seus milagres já estavam em sério risco de serem tirados dele e os outros anjos não aguentavam mais acordar com ele se remexendo em sua nuvem e batendo as asas desesperadamente toda noite.

Então, para resolver essa questão, os arcanjos decidiram afastar Pip para a extremidade do céu, sua nuvem muito mais abaixo que a dos outros anjos. Assim, ninguém escutaria seus protestos e resmungos durante a noite e poderiam dormir tranquilamente sem se preocupar com ele.

Mas, é claro, ninguém se perguntou como Pip se sentia com aquela decisão.

Ele, mais do que ninguém, estava tendo dificuldades de se acostumar aos últimos anos de turbulência, pior do que estava quando ele era um recém-morto. Tanta incerteza sobre o que aconteceria, sobre o possível apocalipse e a ascensão do anticristo estava o deixando muito inseguro e nervoso, temeroso de que algo horrível pudesse acontecer - não que a ideia de apocalipse seja boa, não - e agora o estavam isolando do restante dos anjos, deixando-o completamente sozinho e desprotegido, sem ninguém para pegá-lo se caísse - figurativamente falando, é claro.

Se antes ele estava tendo problemas durante o sono, agora Pip não conseguia nem adormecer. A sensação de solidão o perseguia como um terror noturno, sem o dar um segundo de sossego em que ele poderia ser carregado para longe, para não pensar em qual a notícia ruim da vez quando acordasse. Mas quando que o mundo era gentil de fazer qualquer coisa que Pip pedia? Se Pip pede, é garantia de que nunca acontecerá; não se depender da sorte.

Em uma nuvem muito menor do que seu corpo, Pip balançava as asas numa tentativa falha de alcançar um rastro de nuvem que foi deixado para trás. Ele não conseguia dormir, como em todas as noites, e o suspiro que deixou sua boca era igual a todos os outros. Ele só queria poder dormir para esquecer seus problemas.

Suspirou e enfiou a cara na nuvem, silenciosamente desejando que pudesse adormecer assim, ou sentir algo que o desse ao menos algo que o tirasse daquele transe de chateação.

Solidão era o pior inimigo de Pip há muitos anos agora. Nem quando estava cercado de pessoas ele se sentia incluso; coisa que não era muito surpreendente, dado que ninguém ali gostava dele. Ir à Terra era terminantemente proibido, especialmente nesses momentos instáveis em que a guerra nuclear estava prestes a acontecer e o anticristo a começar o apocalipse; os anjos eram sempre muito cautelosos com relação a isso. Portanto, descer para a Terra estava fora de questão, a não ser que fosse parte da brigada dos anjos da guarda. Era muito pior para Pip, ao ponto de ser cruel, que tivesse que guardar a segurança de milhares de pessoas ao mesmo tempo e não poder falar com nenhuma delas - não que elas fossem gostar dele de qualquer forma.

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