Gael fica extasiado por alguns minutos. Primeiro pelo fato da neve ter caído tanto em uma única noite que fora o suficiente para cobrir todo o redor do chalé; e segundo por Abgail estar ali, repousando tranquila como um anjo no colo de Deus.
Ela era tão, tão bonita. Poderia ficar horas admirando e foi o que ele fez.
Olhou cada parte daquela mulher, se lembrando em cada esquina de seu corpo o motivo pelo qual a amava. E a falta de motivos, em algumas situações, não a deixava menos bonita. Nenhum pouco.
Gael sabia que na maior parte do tempo não entendia o sentimento que tinha por ela, tampouco porque esse sentimento era tão forte assim. Mas era certo que sentia algo. Poderia jurar que ela era a única coisa que o fazia sentir algo, seja bom ou ruim.
Quando estava perto dela sentia o seu próprio mundo girar mais devagar, tudo ficava mais possível, mais leve, mais amável. Exatamente como ela.
Voltou seu olhar para o rosto de sua amada mas nem a sua beleza excepcional poderia fazer Gael não ver o que estava a sua frente, logo atrás dela.
Uma estranha silhueta escura, borrada, quase como fumaça estava ali, parada e os observando. Não fazia nada além de olhar, e Gael, sem saber muito o que fazer, continuou olhando de volta.
E estranhamente, por algum motivo do qual ele não conhecia, aquela silhueta não o assustava nenhum pouco, parecia inofensiva, tão inofensiva quanto a própria Abgail que dormia profundamente.
Então, a silhueta começa a se mover e Gael assiste seus passos como a um balé. Ela se move até o grande espelho de canto, onde com as mãos ajeita seus cabelos longos, penteando-os com os dedos finos. Ajeita as suas vestes em seu corpo, encara a si mesma uma última vez e então se volta para um móvel que fica frente a frente com a cama do casal.
Ali ela se recosta, repousando suas mãos e apenas observando mais uma vez. Tem algo gentil nela que fazia Gael, por algum motivo, querer chorar. E ele quis mais ainda quando ela sorriu.
Gael ouviu ecoar, não dentro do quarto dos fundos mas dentro de sua própria cabeça, o som de uma risada feminina, de voz suave, distante, exatamente como um eco se repetindo sem parar. Um riso apaixonado, cheio de amor.
Gael sentiu seu peito doer.
Lentamente, deixando um rastro escuro por trás de si, a silhueta se dirige para fora do quarto. Gael instintivamente se levanta e caminha atrás dela, mas a mesma sequer parece o notar ali. Ou talvez só não se importe com a presença dele no lugar.
Ela continua caminhando até entrar na copa do chalé, onde tudo está em perfeita ordem. Ela desliza os seus dedos cadeira por cadeira, suspirando desapontada. Quase como se Gael pudesse ouvir os seus pensamentos, a mesma voz pertencente a risada que ouvira a pouco volta a ecoar dentro de sua cabeça.
Quantos natais, anos novos, festas em família. quantas coisas lindas já vivemos em cadeiras como estas. Cada queima de fogos, cada abraço, sorriso e aperto de mãos... - A silhueta pensava e Gael ouvia atentamente - Mas agora ele me trouxe aqui, para vivermos sozinhos.
Ela olhou para Gael, surpreendida. Então, dirigiu os seus olhos até a janela da copa e pela primeira vez desde então Gael se apavorou.
A neve não existia mais. Em seu lugar, algumas poucas árvores perdendo suas folhas no outono estavam lá, e para sua surpresa ainda haviam alguns poucos vestígios de fuligem sobre elas e não haviam chalés ao redor do que ele estava, nem mesmo no mais distante que seus olhos poderiam enxergar.
Por algum motivo, Gael não estava onde deveria estar. Estava de volta à charneca queimada, antes mesmo de que o bosque fosse replantado e os demais chalés construídos. Mas não teve muito tempo para pensar nisso.
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O Quarto dos Fundos
HorrorGael Webber já não sentia mais nada, tampouco tinha alguma coisa que o motivasse. Chegava aos seus 38 anos de idade com um profundo vazio crescente em seu peito e por mais que tivesse um bom cargo, bons amigos e uma família que o amasse, ainda assim...