Capítulo V

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A chuva continuava enchendo meus ouvidos com seu barulho constante, mas tranquilizador, de pingos gotejando ao redor. Embalando os pensamentos confusos que iam e viam, paravam entres imagens borradas de alguém que sorria preguiçosamente na grama, enquanto aproveitava a tarde escaldante embaixo de uma árvore.

O vento acariciava as mechas negras como penas de corvos, e os olhos dourados que lembravam ouro derretido se abriram para mim, e os lábios ácidos se moveram sibilando palavras mudas:

“Você está encrencada, pestinha”

- Quem..- Minha voz de recusava a sair da garganta, parecia entalada e por algum motivo desconhecido as lágrimas caíam dos meus olhos.

A única coisa que conseguia ver nítida do estranho eram os olhos afiados, todo o resto não passava de um borrão.

“Hora de acordar.”

Sibilou novamente, deixando um sorriso arteiro contornar os lábios antes da minha mente ser jogada de volta à realidade.

Alguém caminhava debaixo do chuvisco, os passos silenciosos se quebravam com o esguicho das poças que pisava, as mãos firmes e longas segurando minhas pernas moles, enquanto me carregava nas costas. Meus braços pareciam gelatina jogados sobre os ombros fortes, e minhas mãos não apertavam mais o guizo.

Ai, Meu Deus!

- Cadê... – murmurei, abrindo os olhos desperta.

- Se não quiser que te largue aqui, é melhor parar de enterrar as unhas em mim, idiota.- disse a voz irritadiça, que não me era desconhecida.

- Kyo? – digo, retirando as unhas que estavam cravadas no seu ombro.

A pele danificada se curou automaticamente, como se não estivesse com um corte fundo segundos atrás. Um belo exemplo de regeneração vampirica.

- Pensei que estivesse morrendo.- confessou, sem desviar a atenção da trilha.

Eu também, concordei mentalmente.

- Como se não bastasse ter desmaiado, não largava aquela velharia. Pensei que teria que quebrar sua mão pra arrancá-lo.- continuou, reclamando como um velho que sofria de artrite.- A fita irritante está no seu pescoço. E não ouse me agradecer, estou aqui contra minha vontade!

Assenti sorrindo e ele soltou “tsk”, provavelmente me xingando.

O plano não havia dado totalmente errado. Afinal, minha prioridade era o guizo e agora o tenho; a fuga também seria relevante se tivesse conseguido, mas não foi. Então o que posso fazer? Me desesperar rastejando por perdão? Sem chance. Sempre há oportunidades, basta saber aproveitá-las.

- Ainda está acordada?

- Humh.- assenti, percebendo uma mudança na sua acidez.- Preocupado?

Por um segundo ele travou, mas continuou mantendo a pose de indiferença.

- Porque isso não me parece coincidência, muito menos que esteja aqui contra a sua vontade.- continuei, mesmo o sentindo tenso.- Naquela hora, que você apareceu no quarto foi muito rápido. Até parecia que já estava por perto, esperando por alguém. E eu posso jurar que esse alguém é a Nina, ou estou errada?

- Não, sua raposa ardilosa.- bufou, pisando duro.

- Pelo menos é honesto.- digo, sentindo a pele da clavícula arrepiar contra o metal do guizo.

- E por que conclui algo tão precipitado?- pergunta, provavelmente franzindo o cenho.

- Você poderia ter negado e nobres odeiam ser contrariados, mesmo quando estão errados.- explico, e ele solta outro insulto envolvendo “idiota”.

- Nem vou perguntar como sabe disso, tsk! – resmungou baixinho, enquanto olhava para baixo.

E para nossa surpresa, Gabe apareceu com um guarda-chuva.

- Gabe! – repetimos em uníssono.

O filha da mãe sorriu e como se estivesse dentro de uma brincadeira - e talvez fosse para ele - disse com a maior naturalidade do mundo:

- Te achei, raposinha.

Contudo, seus olhos azuis refletiam mais incertezas que uma tempestade em alto mar. Ilegível e enigmático, sem qualquer possibilidade de saber como aplicaria minha punição.

O Mokai – também conhecido como mundo demoníaco, ou apenas “Submundo” para os mais habituados a ele – era visto como uma cópia invertida do mundo humano, é claro que com mais perigos e monstros, que governam sobre as próprias leis da sobrevivência: os mais fortes subjugam os mais fracos, resumindo, ou você é a presa ou é o caçador. E nessa sociedade de matar ou morrer, é claro que cada povo tinha o próprio estilo de mostrar o inferno na Terra.

As tão temidas torturas.

Os vampiros eram eternos admiradores da humanidade por criarem meios e ferramentas tão eficazes para derramamento de sangue e, ainda assim, manter as vítimas vivas para sentirem a dor.

As imagem de damas ferro, guilhotinas e os outros artifícios mortais que os registros de Grimm descreviam nas torturas me vieram à mente, mas o mais assustador não era nada disso. Magnus era pior que tudo, com suas habilidades químicas e cirúrgicas que usaria da forma mais perturbadora contra mim.

Talvez eu devesse ter fugido.

Talvez não sobrevivesse contra aquele carrasco, pelo menos não inteira.

- Eu quero ir com Kyo.- falei pausadamente, com o olhar impassível diante dele, enquanto por baixo da minha face inexpressiva enterrava todos os meus temores num túmulo.

Seja como uma boneca de cera, sem expressão, sem sentimentos, sem nada. Não deixe que nada transborde além do que precisa.

Respirei fundo mantendo a respiração calma, os nossos olhares ainda um no outro se recusando a desviar. O clima pesado continuou até que Kyo interveio, para minha infelicidade:

- Já chega!- disse, encolhendo os ombros no meio do fogo cruzado e, andou até me jogar nos braços do outro.

Os braços que imaginava serem esguios me ergueram antes que caísse na lama, inconscientemente me agarrei contra seu pescoço, o grito de susto ainda contido na garganta quando percebi a situação estranha.

- Kyo seu...- esbravejei, mas ele havia evaporado, nos deixando a sós.

Com a chuva aumentando e o guarda-chuva largado sem jeito no chão lamacento, os segundos se passaram arrastados no silêncio constrangedor.

- Pode se abaixar perto do guarda-chuva?- pedi, fugindo do seu olhar como o diabo da cruz.

Já era estranho o suficiente estar sendo segurada como uma noiva, não iria arriscar olhá-lo e deixar transparecer o quanto me sentia nervosa com aquela proximidade.

Então porquê só agora decidiu vir atrás de mim?

- Não vai tentar me matar, né? - franzi o cenho analisando se valia o esforço extra, mas não valia.

- A estrutura é frágil, além disso, não é pontuda.- gesticulo, apontando para a ponta arredondada e ele concorda silenciosamente, agachando-se, enquanto estendo o braço e o pego, abrindo sobre nós quando se levanta.

- Consegue se segurar só com uma mão?

Seus olhos encontram os meus, muito perto, graças ao guarda-chuva. Talvez tenha sido uma péssima ideia, mas agora é tarde demais para voltar atrás.

- Lyra?

Pisco, tomando consciência das nossas testas coladas, do lábio pálido a centímetros do meu que esbanjava vitalidade.

- Sem dúvida alguma.

Cravo as unhas sem piedade contra sua pele num aviso, escondendo o rosto contra seu pescoço, enquanto ele não se incomodou e nem falou nada. Apenas continuou caminhando para a mansão, enquanto eu segurava o guarda-chuva que protegia nós dois da chuva.

Como se fossemos uma dupla.

O conto da máscara Onde histórias criam vida. Descubra agora