Capítulo X

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O vidro das portas do armário se estilhaçaram com o impacto das costas de Lyra e um gemido lhe escapou, quando desabou de joelhos no chão, repleto de cacos, que perfuraram os joelhos e as panturrilhas, espalhando o odor de sangue fresco.

As duas pessoas se aproximaram dela, suas formas borradas como vidro embaçado, enquanto alegremente se deleitavam em vê-la de joelhos.

- Quem diria, não é, Dimitri?- perguntou Dorian, agachado em frente dela e erguendo sua cabeça pelos cabelos.

Dimitri balançou a cabeça concordando, balbuciou algo ao seu ursinho de pelúcia o deixando sobre a cômoda, como se quisesse que assistisse à tortura de camarote.

- Você irá nos divertir, cadela?- perguntou afirmativamente.

Os olhos ametistas de Dimitri brilharam extasiados, quando ela murmurou e cuspiu na cara de Dorian, que sorriu se deliciando com a resistência.

- Oh, assim mesmo cadela!- gemeu Dorian, empurrando a cabeça dela para trás.- Me deixe provar seu desespero.

O sorriso malicioso nunca abandonando seus lábios.

Os dois não eram mais borrões na sombra, agora os via, nitidamente rasgando suas roupas e dilacerando sua carne com mordidas brutais. Porém, Lyra suportava, mesmo com Dimitri mordendo a sua barriga e Dorian sugando próximo a virilha, não cedeu. Ao invés disso, mordeu os lábios com força e enrolou os dedos dos pés segurando firme, de olhos fechados, sem derramar uma lágrima.

Estavam-na tratando como gado. Não, pior que isso, como um pedaço de carne que rasgavam, sem qualquer remorso. Totalmente sedentos pelo desespero, que Lyra, com todas as forças segurava dentro de si. Trancafiada como a fera mais perigosa do mundo.

E tudo aquilo estava acontecendo por minha culpa e negligência. Toda a dor e sangue derramado era fruto da minha fraqueza humana, da minha impotência em não ser capaz nem de ajudar a mim mesma.

Da minha inutilidade como ser humano.

Se não eu, então porque ela? Justo quem foi tão gentil comigo naquele pequeno inferno, deveria estar naquele estado.

- Parem...por favor....eu imploro!- pedi quase sem voz para gritar, apoiando-me no suporte de transfusão de sangue para não desabar.

Nem sequer se deram ao trabalho de olhar para mim, apenas riram cheio de escárnio quando me escutaram cair fraca no chão depois de tentar andar.

- Veja o quão patética é a pessoa por quem está se sacrificando.- Dorian virou seu rosto na minha direção e ela sorriu abrindo os olhos e, com os lábios sangrando de tanto morder, sibilou as palavras mudas:

"Vai ficar tudo bem...."

- Não vai! Vai morrer assim!- gritei me arrastando, com o soluço e o desespero entalados na garganta.

Dorian não conteve a risada de escárnio e virou o rosto dela para si, mordendo seus lábios num beijo faminto e forçado.

E pela primeira vez a vi chorar.

- Para! Por favor, para com isso!- gritei de raiva e dor, tanto de não conseguir me mover, quanto de vê-la chorando.

Talvez pela raiva ou pelo desespero me arrastei até lá, mas antes mesmo de poder toca-la fui empurrada para trás, caindo aos pés da cabeceira da cama.

Dorian me olhou de esguelha e disse:

- É doloroso assistir, vadia?

Canalha!

- Qualquer um, não importa se é Deus ou o Diabo! Salve-a!- implorei, com a força do ódio e da dor que não era apenas físico. Era como se todos os pensamentos negativos que guardei caíssem em avalanche.

Entre Deus e o Diabo, quem atendeu o chamado era o mais próximo da personificação do anjo caído que conheci:

- Continua acreditando nesse Deus?- indagou Dante, surgindo de braços cruzados na porta.- Não se engane, nanica. Deus nunca estará aqui por nenhum de nós, nem mesmo por você ou ela.

A olhei e as lágrimas ainda rolavam, enquanto Dorian sugava sua boca com malícia. Não havia escolha, era recorrer ao diabo ou o pior viria a acontecer e, só de pensar, sentia nojo.

- Dante, faço qualquer coisa mas salve a Lyra!- implorei de joelhos, sem me importar de estar entre choros e soluços.

E como se os estrondos dos trovões reivindicasse a minha suplica, Dante puxou Dimitri pelo colarinho o jogando contra a parede que rachou. Dorian nem precisou de aviso, quando percebeu tudo socorreu Dimitri caído no chão.

Dante lhes deu as costas e, quando nossos olhares se cruzaram vi a raiva faiscando de seus olhos. Então todo o quebra-cabeças se encaixou, ele já sabia o que os gêmeos fizeram comigo!

- Desapareçam antes que eu arranque suas cabeças.- ordenou, sem olhar para Dorian que evaporou no mesmo instante carregando Dimitri, quase inconsciente, pelos ombros.

Dante usou meu pedido para encobrir a própria raiva de terem provado seu petisco favorito. Mas eu já tinha visto como reagia. Quando seus bolinhos de polvo eram surrupiados não emitia essa raiva fria, pelo contrário, reclamava abertamente.

Então porque comigo isso mudou tão drasticamente?

- Dante?- Mas não respondeu, apenas me ajudou a andar até cama e verificou as mordidas em mim, trincando os dentes frustrado.

- Eu...

- Esqueça!- corto-o, segurando seu rosto com as mãos.- Ela é a prioridade agora, entendeu?

- Sim.- respondeu, surpreso com a firmeza das minhas palavras.

Porém, antes mesmo que Dante pudesse reagir, alguém o puxou para trás e lhe acertou um soco em cheio contra seu rosto, jogando-o com tudo contra a escrivaninha no canto do quarto que se partiu como palitinhos.

- Desgraçado!- Aquele era Kyo fervendo de ódio.

Ele havia interpretado errado!

- Não foi ele, Kyi!- disse, me pondo entre ele e Dante, que ainda se levantava com o nariz sangrando.

Mas ainda enfurecido, Kyo rosnou:

- Então quem foi?

Se eu dissesse ele caçaria os gêmeos até mata-los .

- Não importa agora!- exclamei, chacoalhando seus ombros.- Leve-a até o Magnus, agora!

E engolindo todo seu furor, Kyo virou de costas me obedecendo de imediato. Por alguns segundos aquilo me surpreendeu e eu ri de nervoso com aquele inferno me permitindo chorar nos braços de Dante.

Ele tinha razão, não havia Deus para ninguém ali.

O conto da máscara Onde histórias criam vida. Descubra agora