Capítulo 2-Um dia inesquecível

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Fazem hoje exatamente 15 dias desde que quase fui levado para o outro lado, se esse existir, por um caminhão à mil por hora na estrada principal perto do mercado central.

Desde aquele dia, não paro de refletir sobre coisas maçantes como qual é o valor de uma vida, se a mesma pode acabar do nada e nem ter valido tanto a pena...? Sei disso porque se a minha vida tivesse acabado ali, quase ninguém além da senhora minha mãe e meu irmãozinho lembrar-se-iam de mim.. mas afinal é nas lembranças que vemos o valor que uma vida teve?

Ahhhhh que dor de cabeça.. logo eu pensando em coisas tão profundas.??? A experiência de quase morte realmente pode transformar-nos em seres humanos profundos. Mas talvez profundo não seja bom. É que sabe, gosto de esgueirar-me na superfície das coisas subtraindo apenas o suficiente para procrastinar mais um dia.. Bom, pelo menos era o que eu achava.

"Knock knock knock"

Espancam-me a porta do quarto onde me encontro, completamente nu, sentado na secretária e refletindo essas parvoíces todas, e eu já sei quem é só pela bruscalidade escondida naquele suave bater da porta.. Ai ai yayai se não é o pequeno grande Tavares! Deito a mão nuns calções e uma camiseta minimamente limpa e vou à porta.. não antes, claro, de anunciar meu desconforto:

--Já vai já vai.. Tavares.. não me esqueci do nosso pequeno compromisso diário..!

--Bom dia mano! Tá bem já estou pronto! Vamos logo não gosto de atrasar! "Pufavorzão meu irmãozão"

Eu sei que ele é irritante mas poxas realmente não aguento com meu puto... OH!! NÃO NÃO NÃO NÃO... Quando passei a pensar desse jeito tão gentil??!! O que diabos se passa comigo!?

Abro a porta e lá estava! Tavares da Graça Monteiro Júnior devidamente equipado com seu traje escolar, resultado de dias de esforço do alfaiate particular da família Monteiro, o Sir Alberto Siqueira, um homem idoso. 64 anos de carreira e 80 de vida. É um milagre ele ainda estar em ofício depois desse tempo todo mas como ele sempre costuma dizer: "É o amor ao meu trabalho que me livra das doenças e da morte. E enquanto o meu amor continuar, continuarei eu sempre forte. Não sou mais um jovem tolo apaixonado, graças a maturidade dos cabelos brancos, sou simplesmente jovem idoso amante da costura!"

Eu logo via que este menino não batia bem da cabeça. Qual criança prefere a alfaiataria às montras deslumbrantes das lojas igualmente deslumbrantes da praça da cidade? É quase como se fosse a reencarnação de algum membro da máfia italiana.. um Antônio Broccini talvez.. nem sei se onde vem esse nome...mas enfim..

--... Já tá na hora mano...

-Está bem.. vamos indo. Despeça-te da mamã enquanto calço minhas sapatilhas ali na varanda depois encontras-me no portão. Pode ser?

Sei... É um modo bastante formal para se falar com uma criança de 8anos.. mas como disse, este é um Antônio Broccini!... Se lhe trato como criança ainda me mata...

- Tá bem.. mano.

Ntlha... E o rapaz nem corre. Caminha como se fosse um desfile.. dá beijo na bochecha esquerda da senhora minha mãe, que está sentada no sofá principal da sala a ler Clarice Lispector, que sorri gentilmente e sussura-lhe qualquer coisa ao ouvido.

Com as sapatilhas calçadas, dirijo-me ao portão e espero a vossa excelência senhor presidente da casa. Este, que chega com uma felicidade perturbadora no olhar, segura na minha mão, dá um sorriso 33 e diz:

-Vamos mano. A escola já sente minha falta..!

-Está bem, está bem.. vamos já à paragem do autocarro.

          ***

A esta altura deve parecer estranho dois irmãos de uma família com alfaiate a disposição, usarem transporte público e não uma viatura particular e um motorista particular.. mas as finanças já não andam lá muito bem desde a morte do mau pai, o Sir Tavares Da Graça Monteiro, no novembro do ano retrasado.. o alfaiate recebe de salário a satisfação de servir com maestria a 3ª geração da família Monteiro.

Chegados a paragem, não esperamos muito e logo aparece um autocarro e metemo-nos lá dentro. Tavares, no meu colo, ansioso por mais um dia na sua amada Escola primária completa
25 de julho, escola que frequenta desde o ano passado. Antes, estudava no Colégio Montreal, mas, com a morte do nosso pai, ficou difícil gerir as propinas e tivemos que colocá-lo nesta, que apesar de pública, é uma das melhores instituições de ensino da província. Não sei bem se ele realmente está feliz com esse novo ambiente, mas é bom vê-lo assim todo animadinho.

Uma moça entra no autocarro. Altura média, tonalidade de pele clara, trajada de um blusão preto com imagem de urso polar no centro. Não vejo como está vestida em baixo. Os assentos a frente só me permitem ver a parte de cima dela, e uma belíssima parte! Digo-vos eu! Faria-vos bem estar aqui.
Faz bem a vista olhar para ela.

Os nossos olhares cruzam-se.
E percebo de imediato.. É a doida do outro dia..! Ca-ta-ri-na.. aqueles olhos cheios de brilho são inconfundíveis. Ela acena para mim e sorri. Estranho, não há cicatrizes na sua mão e é até delicada. Então no outro dia estive a ver coisas?

Reparo que o assento atrás de mim está vago, e ela vem caminhando na minha direção.. é simplesmente maravilhoso!

Aquela doida é realmente bonita!...

O autocarro arranca e ela tomba? Haha magnífico! Bem feito.. arghh uffa! Quase que me deixava completamente envenenado com tanta beleza.
Enquanto ela se recompõe, o ombro esquerdo dela esguicha sangue... Acho que foi um tiro!







Adeus, Catarina.Onde histórias criam vida. Descubra agora