Capítulo 6 - Laranjas e outras lembranças

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Estava sentado na recepção quando veio ter comigo o doutor que estava responsável pela Catarina..
Levei-a ao mesmo hospital no qual havia feito a cirurgia de remoção do braço.
Ali sentado, comecei a recordar novamente do campo, da Silvana, senhorita Vanos.. e, lembrei-me que pouco depois daqueles dias, depois de termos voltado à capital e aos seus barulhos, a situação do meu avô piorou e eu e o meu pai fomos ficar lá uns tempos. Minha mãe não podia ir porque alguém tinha que ficar a cuidar das coisas em casa e além disso, o trabalho dela não a permitiria outras férias.

Os dias lá eram tranquilos e calmos, mas divertidos mesmo assim.
Descobri que meu avô afinal tinha sido escritor e mostrava-me todos os dias suas coleções de livros.. eram tantos livros! E lia-me vários deles.. foi ali que comecei a gostar desse outro mundo. E até maquinei palavras para endossar a menina Mendonça e fazer-lhe cair de amores por mim. Tinha sido meu primeiro beijo e eu queria que fosse minha primeira tudo. Depois de um tempo podíamos ser "melhores amigos" até termos idade de chamar isso de namoro e depois isso seria um casamento e depois de um tempo, estaríamos os dois também na nossa casa, quer fosse no campo ou na cidade, a desfrutar do amor e do calor de nossos netos.

Aprendia cada técnica oculta da literatura com o melhor escritor que eu agora conhecia (meu avô) e, numa dessas tardes, entre os Machados de Assis e as Flores belas da Espanca, descobri que o nome de solteira da minha avó era na verdade Marília Mendonça.. e ela era empregada da família Mendonça tratada como filha porque os pais verdadeiros dela haviam morrido num acidente quando ela só tinha 13 anos. Muita coisa complicada aconteceu e ela terminou como empregada daquela família, onde meu avô, anos mais tarde, ia frequentemente para tratar de acordos de terras e gados. Mas no final, quem acabou tratado foi ele. Completamente apanhado pela exuberante presença da empregada.
Era empregada, mas transpunha um ar tão nobre e sublime.. ou talvez não, mas quem pode contrariar um homem apaixonado?
Seria ultrajante um senhor de terras casar com uma empregada. Por isso o apelido dela foi trocado para Mendonça e assim pareceu ter sido um casamento arranjado entre um patrono e uma filha distante de uma casa grande.
Eram sempre histórias muito interessantes de se ouvir. Quase nunca sabia se ele estava a ler ou a relatar fatos passados. A linha entre a ficção e a realidade já há muito havia deixado de existir.

Essas façanhas todas nutriam este pequeno menino apaixonado. Estava muito animado para rever Silvana. Mas um pouco receoso... Afinal, beijei-lhe e fugi. Será que ela me odiava?

           ***

-Senhor Monteiro?
... senhor Monteiro??

-Ahm! Doutor... Sim sou eu obrigado.. o que se passa? Ela está bem? O que houve?

-Calma.. calma.. foi só uma desidratação e ela parece estar a andar com muito estresse e sofreu uma hipotensão arterial o que levou ao desmaio.. seria bom se ela tentasse descansar de vez em quando..

-Graças à Deus doutor! Muito obrigado... Ela pode receber visitas? Posso ver como está?

-Fique descansado. Ela já está estável. Mas, aplicamos alguns sedativos nela. Melhor vê-la só amanhã. Hoje ela definitivamente deve descansar

-Está bem doutor. Assim o farei... Muito obrigado! Obrigado!

            ***

A situação em casa está a estabilizar-se. Minha mãe pensa em viajar para o campo e ficar a viver com minha avó. Podiam não ser as melhores amigas. Mas agora, estavam experimentado as mesmas dores. Ambas perderam um marido e um filho. E acredito que faria-lhe bem.. ela quer aposentar-se e passar o resto dos dias em luto e aprendendo a conviver com tudo aquilo. Ninguém melhor que a sogra para fazer-lhe companhia nessa solitária missão.
Só entende quem conhece a mesma dor. Feliz ou infelizmente.

Eu, depois de algum tempo talvez deva ir para lá e assumir todo o monopólio do meu avô. Por mais incrível que pareça, deixou-me como herdeiro maioritário antes de partir, coisa que meu pai também fez. Descobri recentemente que afinal sempre tivemos dinheiro. Meus pais haviam aberto uma conta para pagar a melhor universidade para Tavares, pois, devido a sua notável genialidade, precisaria de uma boa instituição de prestígio. E grande parte do dinheiro deles os dois ia para lá.
Quando meu pai morreu, minha mãe ainda alimentava a conta.
Não só por Tavares, mas talvez para manter algum contato com as lembranças que ainda possuía do seu homem. Afinal, apesar de julgamos que não, depois da morte a vida continua. Por muito que amemos alguém, depois que morre, de uma forma ou outra, aprendemos a conviver com a falta desse ente e de repente nos vemos lembrando do seu rosto só talvez quando fazemos algo que costumávamos fazer com o falecido. Algo como, por exemplo, abastecer uma conta poupança para um filho.
Mas agora, tudo isso é inútil, e de diversas formas possíveis. Tavares morreu. E minha mãe não quer mais saber de nada daquilo. Dinheiro perdeu qualquer valor para ela quando perdeu seu caçula e seu amor.

Deixou-me tudo e foi para o campo.. eu não sei bem o que fazer. Mas uma coisa está clara. Preciso resolver as coisas com a Catarina primeiro.

Aquando da minha estadia com meu pai em casa do meu avô, não cheguei a ter contato com Silvana. Ela e o pai já haviam regressado às suas terras. A única forma de me recordar dela, era visitando a minha árvore, que ela nomeou "senhorita vanos", coisa que eu fazia com bastante frequência. Já havia até criado uma rotina diária na verdade:

Acordava, e depois do banho e outras higienes ia ver o avô, conversávamos sobre o que houvéssemos sonhado, ouvia algumas histórias, ia tomar o pequeno almoço, saía para o campo, regava a senhorita Vanos e imaginava-me com Silvana... Voltava, tinha aulas com um professor particular, ia ver novamente o meu avô e passávamos juntos o resto da tarde até a hora da janta e depois dormia. Mas num dia logo ao acordar, meu pai falou-me que houve uma emergência e levou-me de volta à capital. No entanto, ele regressou ao campo alegando ter coisas ainda por tratar. Só anos depois é que descobri que meu avô havia perdido a vida naquele dia e ele tinha declarado como um dos seus últimos desejos, que eu não o visse sucumbir de vez e nem tivesse um mínimo vislumbre que fosse do seu rosto sem vida. Queria que eu lembrasse-me que sempre que o chamasse, ele ouvia e respondia. Sempre que o abraçasse, ele abraçava de volta, e sempre que chorasse, limpava minhas lágrimas e me contava histórias.. queria que eu me lembrasse dele vivo... E de fato, até hoje nunca soube onde foi enterrado.

          ***

Ia visitar a Catarina. E comprei-lhe um cesto de laranjas frescas.

-Ahm... Osvaldo! Que atencioso da tua parte. Muito obrigada.. ahh.. estou tão embaraçada! Fui desmaiar naquele que deveria ser nosso segundo primeiro encontro. Desculpa.. estraguei tudo!...

-Não não! Imagina.. o importante é que estejas bem. Podemos ter quantos encontros quisermos.. contanto que estejamos ambos vivos. Trouxe-te algo.

Mostro-lhe o cesto com laranjas ainda por descascar. E entrego-lhes umas. Ela parece-me um tanto atónita.. quem traz laranjas cascadas à alguém acamado e ainda por cima deficiente?

-.... obrigada pelas laranjas?...

-Bom, não são da senhorita Venos, mas aposto que são suculentas... Então, menina Silvana, queres que te descasque algumas?

Adeus, Catarina.Onde histórias criam vida. Descubra agora