Capítulo 3 - Salve-me outra vez!

39 2 5
                                    

Ainda me lembro nitidamente do terror que foi estar ali naquele autocarro e vivenciar aquele momento de terror e apego a vida..

Mas o mais triste não foi o ombro dela fuzilado. O mais triste foi quando percebi minha camiseta molhada e minhas ancas completamente sobrecarregadas com o dobro do peso que tinham.. Quero dizer, tudo foi bastante rápido! Num momento estava ali a observar e a quase apaixonar-me e noutro momento Catarina tombava pela segunda vez mas desta vez, não por falta de atenção. Antes fosse..!

Não sabia ainda de onde tinha vindo a bala, mas ela certamente foi baleada e não foi a única! Houve mais uma vítima naquele autocarro.. e.. foi devastador! Completamente devastador!!!

            ***

No nosso primeiro encontro, quase fui esmagado por um caminhão e ela salvou-me a vida. No nosso segundo encontro, não houve salvador. Foi trágico...! É trágico nossos encontros envolverem situações de perigo isso não é bom sinal... Mas ainda assim, visitei-a no hospital 2 vezes.

Da primeira vez, o quarto dela já estava praticamente lotado.
Uma senhora --igualmente linda com uma expressão jovial que deduzi ser a mãe dela-- caiu e um senhor supostamente crescido e com um rosto que transmitia o tipo de maturidade que só se consegue depois de várias experiências dolorosas e trágicas, agarrou-a pelo ombro e a carregou cuidadosamente terminando o embalo com um abraço tão gentil que quase me senti envolvido naquela ternura mesmo num ambiente tão doloroso.

Catarina está deitada na cama hospitalar e tenta sorrir a todos que ali estão.... Não vejo o que acontece a seguir, aquelas pessoas estão por toda parte.

Afasto-me da porta e volto pra casa.. voltaria num outro dia.
Conforme ouvi pela enfermeira que cuidava dela, ela ficaria ali por mais 2 dias.

No dia seguinte, realizei a segunda visita.

Estava perto do quarto 206, onde ela se encontrava, quando escutei soluços... E suspiros.. fiz barulho com os pés e esperei dois minutos. Bati-lhe a porta e  entrei.

Ela já estava armada com outro sorriso.. mas os olhos não eram mais tão brilhantes como costumavam ser.

-Olá! Ca-ta-ri-na....

-Olá.. Osvaldo.. não precisava incomodar-se! Com certeza tinha coisas melhores pra fazer que vir aqui visitar-me. Quer dizer, mal nos conhecemos!

-Agora estamos quites. Tinha que fazer por si algo que não precisaria fazer. Mas.. estás a aguentar-te bem?

-Sim..Sim.. nem sei porquê ainda estou hospitalizada. Foi só um tiro e a perda de um braço! Grande coisa!... Não é como se.. não é como se eu fosse uma pianista e....

Ela começou a chorar.  Percebi então que provavelmente fosse realmente pianista.
Acho que ela teve uma experiência pior que a morte: Ser exposta a uma vida morta.
Mas, julgo eu, que ela é do tipo de pessoa que evita sentir tristeza por si mesma colocando na mente que é ingratidão por sei lá o quê.. e que há gente em situação pior!
Mas naquele momento ela chorou. Talvez por eu ser um completo desconhecido, ela não precisava manter nenhuma postura e nem precisava defender uma posição. Estava livre pra ser quem quisesse e fazer o que quisesse por si mesma! E ela escolheu chorar.

Segurei firme na mão esquerda dela, a única que tinha agora, e passados uns minutos ela ficou um pouco mais calma.. começou a soluçar e fez um longo suspiro.

-Obrigada, Osvaldo.. fazia tempo que não me deixava ser frágil em frente de alguém... Fez-me bem! Fez-me lembrar do motivo de ter começado a tocar piano.. do meu avô, tocando pra mim quando eu estava doente ou triste.. era uma melodia tão calma e profunda.. profunda demais para uma criança de 4 anos suportar.. mas.. fazia-me bem e deixava-me calma. E decidi que tocaria piano para outras crianças tristes....

...não sei exatamente o que dizer.. então continuo em silêncio continuando com as carícias à mão dela..

-Mas então!... Conte-me.. como estás Osvaldo?

Foi a primeira vez depois de alguns dias que pareciam eternidades, que alguém perguntou-me isso... Uma lágrima escorreu-me no rosto..

-Eu estou aqui... Tentando encontrar algum sentido pra tudo que tem acontecido... Como estou? Estou destroçado.. desamparado!.. mas queria passar daqui e ver como estavas.. quer dizer, salvaste-me a vida uma vez.. e esperava que me pudesses salvar agora também... Não tem muita lógica mas não sei... Queria mesmo conversar contigo..

-Então... Já estás aqui não é?..  queres me contar o que é que se passa? Podes puxar essa cadeira e simplesmente ficar aqui comigo se preferires... Não sei..

Faço como ela diz.

-É estranho.. mas sinto que posso contar-te o que se passa.. sabe, tem sido muito doloroso desde a morte do meu pai.. meu pai era gentil e bastante responsável. PCA de uma empresa de sucesso ainda aos 26, casamento próspero, marido atencioso e pai pela primeira vez aos 30!

-Eu tinha 20 anos quando ele morreu -prossigo- foi completamente inacreditável! Sabe, eu tinha crescido tão perto dele que nunca havia cogitado a possibilidade de uma vida sem a presença dele. E mesmo quando ele adoeceu, ainda era bastante presente na minha vida! E na vida de todos nós... Eu minha mãe e meu irmão mais novo.. Assistíamos filmes juntos.. falávamos sobre desporto.. essas coisas .. e então de repente ele já não estava mais ali!
Foi um ano difícil! Bastante difícil... Foram meses lutando pela vida dele.... E do nada todo esforço caiu por terra!
O luto foi bastante penoso... E o mais difícil foi explicar ao Tavares, meu irmãozinho, que nunca mais veríamos filmes com o papai.. Que nunca mais haveríamos de nos deitar com ele na cama, até cairmos no sono, a lermos histórias e a rirmos bastante.. foi muito duro também pra minha mãe.. ele era o único homem com o qual ela tinha se envolvido. E agora, aos 42 anos, viúva e mãe de 2 filhos! Um recém-graduado do ensino médio e outro recém-matriculado ao ensino primário..mas de alguma forma.. conseguimos continuar em pé.

O ambiente lá em casa estava a voltar a ser descontraído... Conseguíamos ver Tavares a sorrir uma vez a outra.. não que tivéssemos superado a perda e a falta que nosso pai fazia, mas havíamos aprendido de certa forma a conviver com a dor. Cada um do seu jeito. Eu, tentando ser mais responsável embora ainda falhasse miseravelmente.. meu irmão, sendo mais maduro com tudo que fazia, e minha mãe sendo mais forte e muito mais presente em nossas vidas. Sim, estávamos a conseguir sobreviver... Mas aí então na semana passada.... No autocarro...

Sabe... Você não foi a única vítima daquele pesadelo.. houve mais alguém baleado!
Mas diferente de ti, morreu no momento.

Meu irmão mais novo, Tavares da Graça Monteiro Júnior, aos 8 anos de idade, vítima da crueldade do mundo, perdeu a sua vida, deixando para trás uma mãe quase recuperada e um irmão desajeitado...

Adeus, Catarina.Onde histórias criam vida. Descubra agora