A situação é grave.
Acredito que esteja desmaiada, mas não posso afirmar nada com certeza.. e mesmo diante de tudo isso, vendo o rosto dela tão perto, percebo que todas as minhas descrições antigas a seu respeito são risíveis de tão patéticas que são.
Lindas são as gaivotas e as flores. Ela transcende completamente todo senso de beleza. Na verdade começo a achar que se beleza tivesse rosto, certamente seria o dela. Olha, não sei se toda gente concordaria com isso, mas mesmo assim não consigo deixar de pensar assim. Começo a estudar o seu rosto com a minha mão.. tem uma pele lisa e reconfortante. O rosto está quente. Sinto as maçãs do seu rosto e atrás da orelha esquerda dela, minha mão reconhece qualquer coisa. Uma ruptura da maciez, uma parte rígida.. o que seria? E me parece tão nostálgico! Como se já tivesse sentido isso antes..! Só não lembro onde.
Elevo um pouco a sua cabeça e agacho-me para ver o que seria aquilo.. é uma espécie de borbulha rechonchuda e parece dessas que são de nascença. Reconheço aquilo... já vi antes! Agora lembro-me porquê tive a sensação de ter conhecido essa doida. Realmente a conhecia. As voltas da vida!
Mas melhor levar-lhe ao hospital.***
Era final de ano.
Eu tinha acabado de completar 9 anos e meu pai levou-nos para o norte do país.
Havia tanto verde por toda parte e mesmo assim os olhos não enojavam-se da vista.
Para matar tempo, a cada 100 árvores contadas, minha mãe me dava um biscoito de manteiga do lote preparado ainda em casa. Cerca de 70 biscoitos pra viagem. Eu amava tanto aqueles biscoitos que contar vezes infindáveis até 100 parecia brincadeira de criança...e isso era engraçado por que eu era de fato criança.Foram 5 horas de viagem até a província mais distante da capital do país.
Fomos à casa dos meus avós paternos para passar a quadra festiva.. chamar casa é ser bastante modesto. Aquilo praticamente é uma mansão.
Vários cómodos, trabalhadores da terra, homens dos animais, mulheres da cozinha, da limpeza, homens e mulheres mordomos..etc.Era engraçado como havia tanta gente e mesmo assim todas crianças podiam ser contadas a dedo e nem acabavam as duas mãos!
Eu era neto do patrão, este que foi o primeiro homem que deu destaque ao nome da nossa família e através de vários acordos, expandiu seu domínio até quase cinco mil hectares!! O grande Sir. Alberto da Graça Monteiro. Um homem impetuoso. Incorruptível e bastante mole com sua família. Um amor de avô.
Chegamos por volta das 15:30 e já havia uma delegação de homens e mulheres a espera do filho mais novo do patrão e da sua família. Eu me sentia bastante importante e ainda assim triste. Afinal, não haviam ali outras crianças pra brincar.. mas eu adorava meus avós então compensava. E também, eles eram mais crianças que todos dali.
Entramos mansão dentro e no grande salão logo ao pé da entrada, estava sentado o meu avô numa cadeira de balança e minha avó sonecava quieta ao lado dele. Uma quietude solene.. Bom, que não durou muito afinal chegamos na área!
-Meu filho!!!! Meu netinho! Minha nora!! Que dia alegre para este velho! Quando recebi a notícia de que vinham passar as festas cá, quase que sucumbia de tanta felicidade!?!
Vem cá meu neto! Deixa me ver-te de perto!Corro em direção aos braços do vovô Beto e começo a contar-lhe tudo que vi durante a viagem e durante os 2 anos que não nos vimos. Sabe, meu avô ja andava doente e isso aliado à idade avançada, não permitia muitas investidas à capital tão barulhenta e tão longínqua!
A minha avó, Marília Monteiro, acorda também e partilha da alegria de nos ver. E rever sua querida nora que tirou seu filho mais novo dos braços dela e o levou consigo à capital. "Lá teriam mais serventia os diplomas dele. De nada serve um mestrado em finanças se apenas capinar a terra" minha vó ainda se lembrava dessas palavras tão gentis da sua querida nora. Estava tão feliz com sua presença que nem lhe cumprimentou.. caminhou até meu pai e lhe deu um puxão de orelha! Fiquei maravilhado com aquilo! Meu pai a ser tratado como criança!!! Hahaha gostei imenso de ver aquilo. Mas não gostava que minha vó não se desse bem com minha mãe. Elas eram as mulheres da minha vida! Deviam se dar bem..
Então fui até minha mãe e disse:- Vó! Vó! Minha mãe sugeriu que ficássemos cá não apenas durante a quadra festiva.. mas até às vésperas da abertura do meu ano letivo! Em Março!
Ela não é tão fofa?Bom, nunca disse que fui uma criança puritana. Minha mãe não tinha dito nada daquilo.. Mas eu queria que elas se dessem bem e por isso fiz o que fiz. Obviamente o fato de terem ali muitas árvores com mangas de todas espécies e laranjas das mais suculentas não foi o motivo principal dessa minha proeza. Obviamente....
- Sim, querida sogra. Imaginei que seria uma boa ideia passarmos mais tempo todos juntos como a bela e afável família que somos!
Minha mãe disse isso enquanto apertava minha mão tão forte. Mas não podia dar nenhum piu. A amizade das mangas dependia daquilo. Aliás, a amizade das mulheres da minha vida!..
- Sabe, pode chamar-me mãe.. minha filha! Está tão bonita. Mesmo assim tão gorda. Obrigado por isso tudo que faz por meu filho e meu neto... E ahm Osvaldo! Tenho uma surpresa pra ti!
- Obrigada mãe! O seu filho faz-me tão feliz que a felicidade é expressa no corpo!
- Avó! Que surpresa é essa! Estou curioso! Mostra-me! É lá fora? É uma nova árvore! Vovó!! Por favor..!
- Calma, calma... JOSÉÉÉÉ! TRAZ CÁ A MENINA!
José era o mordomo principal da mansão. Um dos mais antigos e o mais confiável de todos. Se não fosse pelos filhos do Sr Alberto, José certamente seria herdeiro de tudo aquilo!
Ele entrou com seu ar solene e apaziguador. Cumprimentou meus pais e depois a mim. E de seguida nos apresentou a menina que segurava na mão.
Chamava-se menina Silvana e era a filha mais nova da família Mendonça com a qual, minha família nutria grande amizade de gerações! Ela estava ali de passagem com o pai, o senhor não me lembro bem Mendonça.. Ele estava a descansar num dos quartos da mansão. Por isso não desceu para ter connosco..- Olá! Meu nome é Osvaldo! Vamos lá fora? Quero mostrar-te algo! Podemos vovó? Obrigado pela surpresa!!! Nunca pensei ver outra criança por aqui!
Peguei a menina Silvana pela mão e corremos pelos campos. Só podíamos sair por quase 2horas. Já era quase noite afinal de contas..
Fomos até a minha árvore favorita. Uma árvore que eu mesmo plantei há 2 anos quando cá estive.
Ainda não era planta adulta, mas era mais alta que eu. Era um milagre ter germinado. Plantei por acaso. Estava a chupar umas laranjas e enterrei ali as cascas e as sementes!- Vês essa árvore? Eu a plantei. Não é bonita?
- É sim, Osvaldo! Tens umas mãos milagrosas! Gosto muito dela. Como se chama?
- Nome? As árvores tem nome?
- Nas terras do meu pai têm sim.
Certifiquei-me disso eu mesma! Durante 6 longos meses, viajei com o capataz e visitei todas árvores. Dando nome a cada uma. As plantas também são seres vivos e devemos amar todos seres vivos! Então dei nome para se sentirem amadas e nos abençoarem com vários frutos!Uma menina doida. Pensei...
- Nossa! És muito esperta! Eu nunca vi todas as árvores daqui! E nem sabia que as plantas também amavam! Podes dar um nome a essa aqui?
- Tens certeza disso?
- Sim! Vamos ser amigos!.. então como prova da minha vontade, vou deixar-te dar nome à todas as plantas que eu semear!
- Amigos?? Mas.. tu vives na cidade grande e eu não quero sair do campo!
- Não importa... O nome?
- Hmmm.... Vamos chamar-lhe Vanos! Senhorita Vanos!
- Wauu então são assim os nomes das árvores!
Rimos e brincamos por mais um pouco. E quando já era quase noite, lembrei de uma cena que vi num filme. Segurei o braço da menina Silvana. Trouxe-a para perto de mim. Coloquei minhas mãos na cabeça dela, meus dedos entre suas orelhas e dei-lhe o meu primeiro beijo.
Depois corri.***
Lembrei-me disso a caminho do hospital, com a Catarina na ambulância. Lembrei-me da menina Silvana e da borbulha rechonchuda que tinha atrás da orelha. Só o confirmei mais tarde quando olhei no documento de identificação da Catarina.
Catarina Silvana Mendonça.
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Adeus, Catarina.
RomanceAs histórias não surgem do nada. Existe sempre no plano de fundo um motivo para cada palavra descrita ou contada numa história. E tal como não surgem do nada, também não desaparecem do nada. Aos poucos, depois ou antes de atingirem o objetivo, vão s...