ALOMORFIA

1.1

  Depois de devidamente estudar cada detalhe, subi para o quarto a fim de organizar minha mudança. Começaria pelos objetos importantes e pesados como a mesa de estudos. Até decidir de fato o que mudaria, levei cerca de duas horas. Praticamente todo o meu quarto desceu para o porão, exceto a cama e o guarda-roupas.

  Coisas que seriam necessárias estar em prateleiras, guardei numa caixa de papelão, na espera de que meu pai resolvesse o problema.

  Havia - também - um pequeno banheiro, contendo em seu espaço uma pia embutida em um armário, um espelho extenso - que dava impressão de ambiente maior -, vaso sanitário, suporte de papel higiênico, toalhas de rosto de banho e, não muito menos importante, o box.

   O alarme do celular fez questão de soar, avisando-me que o horário de estudar a Bíblia havia chegado. Parei de trabalhar em minha faxina constante e me confortei na cadeira que ficava de frente para a mesa de estudos, arrastando com a mão a tigela de brigadeiro que costumo "beliscar" todas as tardes.

  Hoje eu terminaria a maratona do livro de Pedro. O último capítulo e palavras finais surtiram em mim um efeito até conhecido, porém nunca mais sentido. Ler a Bíblia - para mim - mesmo que seja um ato costumeiro, era rara as vezes em que sentia como se Deus tivesse me alertando sobre acontecimentos futuros. Ainda não sabia distinguir a voz do Senhor nitidamente e duvidava se era a voz da minha própria consciência.

  Papai prometeu explicar-me como saber quando Yavé manifesta-se a fim de deixar um alerta ou se revelar aos seus filhos. Algumas jovens da nossa Igreja já caçoaram de mim, questionando a falta de retorno do Céu já que eu costumo sempre buscá-lo. Todas elas já transmitiram mensagens celestiais, até mesmo visões... Isso me deixa triste e, talvez, desesperançosa. O que há de errado comigo?

  Esses pensamentos fúteis fizeram com que eu perdesse o foco. Encostei a cabeça na cadeira, fechei os olhos e respirei fundo. Meu celular começou a vibrar, abrindo meus olhos involuntariamente. O nome de Flora reluziu na tela do aparelho.

"Começou o estudo? Gostaria de participar, também. Estou na sua porta."

  Pulei da cadeira, subi as escadas correndo e abri a porta. Por mais que existissem muitas casas próximas, a minha era um pouco afastada, numa área mais cercada por arbustos e arvoredos. Não havia perigo. Durante todos esses anos nunca aconteceu nada que fosse considerado macabro, porém eu preferia evitar e, de modo errado, meus pais acabaram criando um receio dentro de mim.

- Que cara é essa? - Flora olhou-me confusa, ajeitando seu óculos no rosto.

- Nada... Entra! - Cedi espaço e quando a mesma entrou, tranquei a porta.

  Flora faz parte da nossa pequena congregação. É uma menina negra de cabelo crespo, olhos graúdos, sorriso perfeito devido aos seus dentes esbranquiçados. Possui rica sabedoria na palavra de Deus e, adquiriu o dom da revelação a poucos meses. A mesma tentava me ajudar a descobrir meu chamado e as ferramentas na qual Yavé designou para que eu pudesse usufruir.

- Meu cantinho agora é no porão. - Avisei, fazendo com que ela abrisse um sorriso cativante. Ela sempre soube do meu desejo em possuir um Lugar Secreto.

- Acácia, que notícia incrível! Acredita que estive orando por você na madrugada de hoje? Tenho algo da parte do Céu para te entregar. Yavé mandou recado. - Finalizou sua fala com os olhos brilhando. Suspirei na tentativa de conter a emoção. Não obtive êxito.

- Então... Vamos para o porão! - Virei-a de costas e a empurrei para a entrada do cômodo.

- Desse jeito você vai me fazer cair dessas escadas. - Disse em divertimento.