transcendentemente

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ἐπειδὴ οὖν ἡ φύσις δίχα ἐτμήθη, ποθοῦν ἕκαστον τὸ ἥμισυ τὸ αὑτοῦ συνῄει...
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"Então, quando a nossa forma natural humana foi cortada em duas partes, cada metade, sentindo falta da outra, se encontraria."

- Platão, O banquete, fragmento 191a (minha tradução).


NOSSO MUNDO

As luzes conseguiam deixá-la ainda mais tonta. Se ela não parasse por um segundo e tentasse diminuir o nó presente na sua garganta agora, poderia desmaiar a qualquer momento por falta de ar naquele corredor, bem antes de chegar na mulher.

Ela ainda conseguia ouvir o barulho das pessoas rindo e conversando atrás dela, confirmando que todos ainda estavam comentando sobre a reunião de hoje enquanto a mulher que procurava estaria sozinha na sala de descanso no final do corredor, já que sempre fora do feitio dela de se apressar para fazer as coisas evitando manter contato com qualquer um.

Sentiu a sua garganta fechar ainda no meio do corredor, cortando com eficácia a sua respiração. Ou as paredes a sua volta ficaram mais brancas, ou a sua pressão começou a despencar, a causando uma certa tontura. Mesmo assim, se forçou a continuar até a sala de descanso. Vocês duas já passaram por coisas piores, pensou, isso não vai ser nada.

Ela tivera a sessão da reunião inteira para se preparar, nem ela e nem a mulher falaram alguma coisa ou interagiram de qualquer forma com os outros participantes, o que a ajudou a pensar muito sobre como poderia informá-la sobre a sua vinda até aqui. Ela cogitou várias vezes sair dali e voltar outro dia, mas ela já havia esperado tempo demais e sabia como era pagar um preço grande por covardia. Então, poderia estar sem nada ao seu favor e com toda a certeza do mundo que aquilo daria errado de primeira, mas ela não iria mais voltar atrás.

Virando o corredor e entrando na sala de descanso, o cheiro de bolinhos e biscoitos vencidos invadiu o seu olfato, revirando o seu estômago já atacado. Precisou se apoiar na porta para não jogar para fora todo o pouco de comida que ingerira aquele dia.

Ela estava certa que poderia desmaiar a qualquer momento.

Forçando a sua respiração uma, duas, três vezes, ela levantou o rosto e encarou firmemente cabelos longos e loiros de costas para ela, achando quem procurava. Ela deixou passar o sentimento de estranheza que teve ao perceber a mulher com uma calça jeans e uma camisa branca de alças finas, nunca realmente tendo a visto vestindo esses tecidos antes. Fora isso, a mulher estava tão calma, os movimentos das mãos abrindo um pacote de bolinho sem pressa, transmitindo uma energia tão mundana, nem parecia que a sua vida mudaria completamente agora. Bom, pelo menos uma das vidas dela.

Decidiu agir rápido antes que a sua vontade de chorar ali mesmo a vencesse.

— Emma? — ela chamou a atenção da mulher. Sua voz saiu incrivelmente falhada, se esse não fosse o chamado que a loira recebera por toda a vida dela, nem ela teria entendido o próprio nome que fora pronunciado mais como um suspiro.

Ainda terminando de abrir o bolinho, ela se virou curiosa. Reconheceu a mulher que acabara de lhe chamar da roda da recente reunião. Era a nova integrante que chegara hoje, bonita, porém parecia completamente abalada.

— Pois não? — Emma perguntou, ainda com um olhar franzido e tirando uma mordida do doce.

Por um momento foi notória uma decepção nova no rosto triste da estranha, mas ela conseguiu esconder rapidamente.

— Não me reconhece?

— Deveria? — perguntou após engolir o primeiro pedaço.

— Sim. — A pose da estranha se desmanchou toda. — E eu preciso que você me escute.

sunastreoOnde histórias criam vida. Descubra agora