Tranquei a porta do apartamento ao entardecer gelado do final de maio em Porto Alegre, ansiosa com o que eu encontraria, com a forma como a noite se encerraria. A excitação vibrava em todos os meus poros.
Maquiada, perfumada, escovada e montada no salto, eu não tinha dúvidas de que as próximas horas seriam perfeitas. Não, mais do que isso. Incríveis! E tal sentimento pouco tinha a ver com a premiação que Maria Fernanda, minha melhor amiga, receberia naquela noite.
Em minha alegria, me esqueci de uma lei bem simples do universo: nem sempre, ou melhor, quase nunca, a vida entrega os nossos desejos exatamente como pedimos.
Em menos de sessenta minutos, o clima da noite se transformou radicalmente, e a última coisa na qual agora eu consigo pensar é no tal evento. Tampouco me preocupo com minha amiga, que, a estas alturas, deve estar tensa diante do meu sumiço e absoluto silêncio. Nem sequer consigo escrever uma mensagem para Fer.
Permaneço dentro do carro, ouvindo Aretha Franklin cantar, outra e outra vez, uma canção que me faz extravasar a imensa tristeza que sinto, chorar todas as lágrimas que tenho e esvaziar a dor que comprime o meu peito. E assim faço. Choro, lamento e sofro, enquanto canto Ain't No Way.
Não há como eu te amar
Se você não me deixar
Se você não me deixar te dar tudo de mimA lembrança do que quase vivi e perdi retorna e um calafrio percorre todo o meu corpo. Os soluços irrompem intensamente outra vez, me desestabilizando de tal forma, que todo o meu corpo volta a tremer. Meus dentes batem, quando apoio a cabeça na direção do Mini. Abraçada a ela, soluço copiosamente, tentando esvaziar a dor, e falhando miseravelmente.
Mas como eu posso, como eu posso te dar
Te dar tudo que eu posso
Se você está amarrando as minhas duas mãos?Sou arrancada deste transe por uma forte e insistente batida na janela ao meu lado. Ajusto a postura e giro a cabeça em direção a ela, encontrando o olhar curioso e consternado do frentista do posto onde parei para abastecer meu carro, quase uma hora atrás. Constrangida pelo espetáculo que ali protagonizo, abaixo o vidro e ouço o rapaz me perguntar:
— Está tudo bem? A senhora precisa de ajuda?
Mordo o lábio inferior tão apertado, na tentativa de conter uma nova onda de choro, que quase sangra. Estou muito sensível e fragilizada mesmo. Passo desajeitadamente as mãos sob os olhos, enxugando o rosto. Envergonhada, sussurro:
— Sim, está tudo bem.
Aperto os lábios, sem conseguir mais conter o calor úmido das lágrimas. Antes que eu irrompa outra vez em choro desesperado, murmuro um desajeitado muito obrigada e dou partida no carro.
O curto trajeto entre o posto e meu apartamento é percorrido aos prantos, e tudo que mais desejo é o calor da minha cama. Assim que estaciono na garagem, viro o retrovisor em minha direção, e toda a dor que sinto está refletida no rosto que vejo no espelho.
Estou completamente desgrenhada.
O elaborado penteado que prendia meus longos e fartos fios castanho-aloirados despencou. A maquiagem, agora toda borrada, desandou como o meu sonho. Os olhos, normalmente , são agora de um verde intenso e escuro, amargos como bile e inchados pelo pranto desesperado. Estou uma bagunça tão grande quanto os meus sentimentos.
Se minha mãe me visse agora...
Com certeza me repreenderia por tamanho descontrole e descompostura na rua. Mas, com certeza, exultaria ao saber a decisão que causou tudo isso. Ai, Jesus, por que pensar em Dona Adriane e seus comentários ácidos agora? Para que aumentar o desconforto?
Faça-se o favor, Babi.
Suspiro profundamente, e meus ombros desabam de vez. Agarro a bolsa, deixo o carro, aciono o alarme e caminho rapidamente em direção ao elevador, torcendo para não encontrar nenhum vizinho. A última coisa que desejo é lidar com a bisbilhotice alheia.
Suspiro aliviada ao chegar ao apartamento, sem que nenhum olhar curioso ou condescendente tenha recaído sobre a bagunça que sou agora. Assim que entro e bato a pesada porta de madeira atrás de mim, todo o meu corpo volta a tremer, sacudido pelo pranto e pelos soluços ruidosos.
Jogo os sapatos e o casaco longe, atiro a bolsa no sofá e desabo sobre o tapete, envolvendo as pernas em um abraço como se nele eu fosse encontrar o conforto que anseio.
Me recosto no sofá e ali permaneço. Como seria bom dar um control Z, voltar atrás e reescrever momentos de nossas vidas cujas escolhas não apenas moldam um indesejado presente, mas também nos mantêm reféns de um futuro construído por um pretérito imperfeito.
Não sei quanto tempo fico nessa autocomiseração, até finalmente esboçar uma primeira reação. Pego o celular dentro da bolsa e vejo treze chamadas não atendidas de Maria Fernanda e duas mensagens dela no WhatsApp. Digito, então, uma resposta para minha amiga:
Fer, desculpa não ter aparecido e ter desaparecido.
A casa caiu. Sim, é o que tu estás pensando...
Tô arrasada, super mal e em casa.
Preciso ficar quietinha e dormir.
Falamos amanhã. BjsLargo o telefone sobre o tapete, olho para a tela do celular e me lembro da ligação que mudou o curso da minha noite. Abraço os joelhos outra vez e fecho os olhos, enquanto o corpo volta a tremer, tomado pelo choro outra vez.
Fico assim mais um tempo, até me sentir esvaziada. Oca. Fraca, até. Sem forças, levanto lentamente e caminho em direção às escadas rumo ao mezanino. Quando meu olhar encontra a cama lindamente preparada para a noite que viria, todo o peso da frustração volta.
Caminho até o closet, arranco o vestido amassado do meu corpo e visto um pijama gostoso e quentinho, antes de me arrastar até o banheiro. Paro em frente à pia e começo a esfregar lenços umedecidos no rosto, como se fosse possível tirar junto vestígios não só da maquiagem desfeita, mas da ilusão vivida. Fito meu reflexo no espelho e me sinto anestesiada.
Será que vou acordar daqui a pouco?
Abro a torneira e me curvo sobre a pia, jogando água no rosto com as mãos em concha. Lembro, então, das palavras sábias de Maria, que parece estar ao meu lado sussurrando: isso também vai passar.
Seco o rosto e caminho de volta para o quarto. Mergulho embaixo das cobertas, estendo a mão em direção ao criado-mudo e pego meu tablet. Fico surpresa ao perceber que, pouco antes de partir para a desastrada noite, eu escutava Kelly Clarkson entoar Cry.
Isso já acabou?
Posso abrir meus olhos?
Não vai ficar mais difícil do que isso?
É assim que é chorar realmente?Seria um aviso?
Sussurro a letra com a cantora norte-americana enquanto minha cabeça gira. Por que acabar assim? Pra que sofrer desse jeito? Vai ser sempre assim daqui pra frente?
Abatida pela tristeza e pela exaustão, pego no sono antes que a música finalize e qualquer resposta surja.
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Num Sofá de Bolinhas - Amor & Terapia
Literatura KobiecaBabi Razen é uma fotógrafa gaúcha atormentada por constante desamor e um coração partido. Disposta a mudar, ela passa a revisitar sua vida no sofá de bolinhas da psicóloga Alice. Uma transformação vai acontecendo, levando Babi ao encontro do mais po...