Human Being

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Provindo das cinzas, os olhos avermelhados — tão quanto o sangue dos que morreram em suas mãos — piscaram exatas duas vezes antes de umedecer os lábios, devaneando sobre sua vingança. Oh, sim, sua vingança contra aquele que acabara com sua vida, planos e tomou sua humanidade.

Humanidade esta que, apesar de não ter tanta certeza se um dia foi dotado de tal, usava como motivo para alimentar o ódio.

Ódio contra uma divindade que sempre pareceu intocável: um Goblin astuto, capaz de criar barras de ouro e conceder desejos. O homem condenado a passar a eternidade com uma espada fincada no peito atrás de uma noiva que jamais poderia jurar amor eterno, fadado a morte.

E ela morreu. E quando morreu, Seok No vibrou incalsavemente, chorando de alegria. Cada vez que chovia, felicidade o atingia em cheio, afinal, se Kim Shin estava sofrendo, era exatamente o que lhe dava prazer. O mataria com suas próprias mãos, da mesma forma que um dia o guerreiro leal do Rei, este que sorria sem um pingo de arrependimento.

Como um homem que derramou sangue de tantos poderia o achar inferior?

A espada fincada naquele peito foi a mesma que lhe matou, e Seok No alimentou a raiva, o desprezo e a sede de vingança por todos esses anos, o espírito maligno não iria descansar até ver o Goblin sofrer.

Afinal, se ambos derramaram rios de sangue, por que um foi privilegiado?

E o poderoso espírito, ao ver o Goblin abraçar uma jovem garota de muito longe, sabia por onde começar seu plano.

— Eu não vou fugir, Soyeon-ah. — Kim Shin sussurrou, passando os braços pelo corpo esguio da jovem e pousando as mãos em suas costas.

— Não sei se acredito mais nas suas promessas. — Ela retrucou, afundando mais o rosto no casaco marfim de seu companheiro. — Você demorou!

— Cheguei antes que você contasse três. — A divindade rebateu um tanto convencida. — É normal estar nervoso assim?

Ao longo de sua longa vida, Kim Shin enfrentara os mais diversos obstáculos: o próprio Rei na era Joseon, espíritos malignos, divindades cujo nome sequer poderia ser pronunciados... e nem mesmo quando uma espada afiada estava apontada meticulosamente em seu pescoço sentiu-se daquela forma. Com a palma da mão suada, enfiou-a nos bolsos, assistindo So Yeon dar um pequeno sorriso antes de fazer menção de abrir a porta.

— Soyeon-ah, por que está demorando tanto e... — seus planos foram interrompidos pela mãe, que franziu o cenho ao ver a figura do homem. — Você é...?

— Kim Shin. É um prazer lhe conhecer. — Sorriu brando, sendo inundado pelo passado.

Onde tudo começou. Ainda com o mesmo rosto, Yeon Hee inconscientemente tinha a sensação de já o ter visto, só não sonhava de ser de outra vida. A encarou com felicidade, reprimir um breve sorriso fora impossível e, quase como um cumprimento após uma eternidade, a divindade comprimiu os olhos levemente.

Se pudesse ao menos lhe saudar como queria...

E por mais que tentasse negar, seu lado humano continuava intacto, sendo as duas a maior prova disso. Feliz por vê-la, mais ainda por saber que em outra vida as duas tiveram a oportunidade de ficarem juntas.

— Quem é ele, So Yeon?

— Ele? Hm, é um Ahjusshi que conheci na loja de conveniência. — mentiu, estendendo as pantufas escuras para Kim Shin enquanto sua mãe se afastava.

— Ahjusshi, hm? — Murmurou indignado, fazendo uma careta ao trocar os sapatos.

— Desculpe amor. — Sussurrou, temendo que a mãe escutasse. — Pare de drama e venha logo.

A casa confortável que So Yeon desejou em sua vida passada: fotos espalhadas, cheiro de comida fresca e sua mãe, que mantinha um sorriso doce no rosto e uma piada para cada situação. A mulher que traçou seu destino antes mesmo de escolher o nome do seu bebê, mulher cujo amor estrondoso salvou a vida de sua única filha.

"Ji Yeon Hee" Kim Shin pensou ao adentrar. "Você viveu bem".

— Venham comer! — Gritou da cozinha, fazendo a filha dar um pulo.

As mãos da divindade estavam empapadas de suor ao se sentar de frente para a mãe da amada: ainda com a mesma aparência, a mulher carinhosamente colocou uma porção generosa de kimchi em sua tigela. Oh, se soubesse que tudo isso aconteceria ao ter interferido em sua vida, faria novamente sem pestanejar.

A mulher que mediou seu destino, e o pensamento lhe dava um frio na barriga.

— Obrigada por cuidar de So Yeon, ela parece ter uma boa amizade com você. — Sorriu de canto, voltando a postura. — Espero que goste.

— Obrigado, Yeon Hee-ssi.

— Coma bastante!

— Está uma delícia, mãe! — So Yeon disse com a boca um tanto cheia, os olhos comprimiram em felicidade.

Quando recuperou as memórias, a primeira coisa que So Yeon fez ao chegar em casa foi abraçar a mãe. Um abraço de reencontro após tantos anos, de alívio, medo, e Yeon Hee percebeu isso: por mais que palavras fossem inúteis, sua filha agia diferente, e aquilo lhe deixou pensativa, sentida com o gesto.

Dormiram juntas naquela noite, onde So Yeon carinhosamente abraçou a mãe por toda noite, sentindo-se completa e, finalmente, vivendo a vida que não teve oportunidade. Os gestos de carinho repentinos não incomodavam a mais velha, mas se perguntava o que acontecera com a filha para estar tão diferente.

Kim Shin assistiu por boa parte do almoço So Yeon falar de boca cheia e reclamar sobre as provas e como queria sair para encher a cara, já que agora era oficialmente adulta. Sendo repreendida pela mãe e depois caindo na gargalhada, notou que uma sensação boa lhe dominava, quase como uma aura leve.

Humanos eram excepcionalmente complexos. Dotados de virtudes, a capacidade de mediar e seguir o bem ou o mau, a humanidade complexa e muitas vezes incompreendida o intrigavam, afinal, até perdera as contas de quanto tempo vivia como um Goblin.

Contudo, o sorriso de Kim Shin se desfez levemente ao perceber que não conseguia escutar os pensamentos de So Yeon. E o simples detalhe lhe deixou alerta.

Alerta suficiente para a comida revirar no estômago.

Eternal Bride [K-DRAMA] [PT/BR]Onde histórias criam vida. Descubra agora