Capítulo 7

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Depois de deixar Bete em casa, tirei meu telefone do gancho. Passei o dia alheio a tudo que acontecia no mundo. Sabia que meu empresário provavelmente estava me ligando há horas, que minha mãe devia estar xingando até nossa sétima geração por eu não ter lhe contado antes, e que o pessoal da RSP só não me demitiria imediatamente porque ainda haviam muitos capítulos de Serena a serem gravados. Ir embora no meio do expediente de trabalho não era minha ideia de funcionário exemplar, mas eu estava irritado demais para raciocinar com coerência.

Pensei que eu gostaria de ter a oportunidade de contar a novidade para minha família, mas essa já era uma ideia inalcançável, então tentei focar minha atenção no que eu ainda poderia fazer. Por Deus, um filho com Bete? Ainda não conseguia imaginar aquilo sem um ar zombeteiro no rosto.

Fiz algumas considerações. Meu pai havia cumprido seu papel de forma satisfatória, mas isso não significava que eu queria ser como ele. Ele era mais do tipo calado, que dava bons exemplos e esperava que seus filhos os seguissem. Éramos ao todo seis crianças, e eu não tinha nenhuma lembrança individualmente marcante com ele.

Decidi que não queria muitos filhos. Não tinha pensado muito nessa questão antes daquele momento, mas parecia uma boa hora para tomar decisões. Eu não me considerava uma pessoa muito inteligente, e apenas pessoas assim conseguiam dar conta de diferentes esferas da vida sem cometer deslizes significantes.

Quando ouvi o som da campainha, sequer me movi para atender. Não estava esperando visitas, e poderia ser qualquer um. Mas a pessoa insistiu. Ouvi a campainha reverberar em meus tímpanos, uma, duas vezes, depois continuamente.

Do outro lado da porta, estava Marlena.

- Você está em casa - constatou ela, me atropelando diante da porta e entrando em meu apartamento. Tinha uma caixa branca nas mãos, e a empurrou em minha direção. - Que sorte.


Queria perguntar o que Marlena estava fazendo ali, mas eu tinha uma ideia clara. Era pouco discreto, mas acho que a situação pedia.

Coloquei a caixa sobre a mesa de centro da minha sala de estar.

- O que é isso? - perguntei.

- Passei na padaria antes de vir - explicou Marlena. - Você ainda gosta de carolinas? É melhor que goste, porque eu comprei quase duas dúzias.

Sabia que Marlena não daria o ar de sua graça se algo muito diferente não tivesse acontecido, e a razão de eu ter tirado meu telefone do gancho era que, sim, algo muito diferente havia ocorrido. Abri a caixa, e peguei uma carolina. Ela estava me encarando.

- Papai? - Marlena ergueu as sobrancelhas, um olhar brincalhão no rosto. - O que aconteceu que não me contou essa parte?

Sorri. Era tudo muito recente, mas a ideia de me tornar pai me agradava. Não era nada como eu imaginava, mas àquela altura já tinha entendido que a vida não costuma seguir nossos planos.

- Eu descobri da mesma maneira que você - falei. - Hoje.

Antes que eu comesse, Marlena pegou a carolina da minha mão e enfiou na boca.

- Bete Ferraz - disse ela, como se dizer seu nome tornasse as coisas ainda mais reais. - Ela é mesmo bem bonita. O filho de vocês também vai ser.

- Marlena, se você não percebeu, eu estou surtando aqui - brinquei, e ela me abraçou.

Eu estava surpreso. Tinha ansiado estar perto dela daquela maneira por muito tempo, mas há meses estávamos mantendo as coisas a uma distância que nos era prudente. Observei Marlena, e ela me observou de volta.

Comemos em silêncio, o tipo de silêncio que guarda pensamentos não ditos. Marlena e eu tínhamos muitos desses. Percebi o quanto estávamos distantes do que tínhamos sido; menos de dois anos haviam se passado desde nossa última quinta-feira juntos, e ainda assim eu sentia ter vivido uma vida inteira.

- Isso é bem estranho - disse Marlena.

- Não acha que eu vou ser um bom pai? - perguntei. - Pois eu vou ser um pai excepcional.

Ela jogou uma almofada em mim.

- Não estou falando disso - murmurou, dando uma mordida em outra carolina. - Eu estava pensando o seguinte: imagina que, um ano e meio atrás, dissessem para você que tudo isso aconteceria. Meu casamento com Cláudio, sua carreira, o bebê com Bete.

E, de certa forma, era mesmo uma nova vida. Tentei me lembrar de minha rotina de antes, de passar horas e horas datilografando. O ponto alto das minhas semanas eram as quintas-feiras. Minha casa era menor que minha atual sala de estar.

E, além disso, naquela época eu estava com Marlena. Parecia muito distante. De certa forma, eu sabia que não a havia superado, mas se precisava engolir uma amizade que nunca foi meu objetivo para ouvi-la em algumas ligações, eu o faria. E fiz por muito tempo. Ao mesmo tempo, via minha vida acontecer, e ela também.

- Certo. - Eu abri um sorriso. - É mesmo muito estranho.

Embora estivesse presente, me sentia um pouco entorpecido. Era como se, em algum momento, eu fosse acordar e estaria de volta à minha vida de antes. Me perguntava se Marlena sentia o mesmo.

- Cláudio sabe que temos nos falado - falou Marlena, os olhos pregados na parede à sua frente.

Meu momento reflexivo tinha acabado. A realidade estava gritando. Me virei para ela.

- O quê?

- Normalmente eu que gerencio as contas de casa - prosseguiu. Estava girando a pulseira que tinha no braço, e parecia rígida. - Mas esse mês ele viu a conta de telefone.

- E o que ele fez? - perguntei. Estava legitimamente curioso.

Não que eu e Marlena tivéssemos algo a esconder. Fora a ocasião em que nos encontramos por acidente perto da cafeteria, aquela era a primeira vez em um ano inteiro que eu a via. Nossas conversas no telefone também não tinham um conteúdo muito comprometedor.

Marlena engoliu em seco. Seu silêncio me incomodou. Depois de alguns segundos continuou:

- Ele quer te convidar para nosso aniversário de casamento. Vai ser uma festa. É na próxima semana. Você não precisa...

Encostei no sofá. Aquela conversa estava ficando esquisita rápido demais. Eu podia fazer o amigo, ouvir Marlena falar sobre Cláudio. Comemorar o lindo casamento dos dois? Seguirei a risada, porque se achava que algumas situações caçoam das pessoas que as vivem, estava tendo uma boa prova de que estava certo. Me levantei, e peguei uma garrafa de vinho e um saca rolhas que estavam na minha estante.

- Tudo bem - Não sei por que concordei. Balancei a cabeça. Era isso o que pessoas maduras deveriam fazer? - Eu vou.

- Você vai? - A testa de Marlena estava enrugada. Acho que um pouco de confusão a rondava, mas essa mesma confusão também estava em mim, e eu não sabia quem deveria começar a se explicar primeiro.

- Sim - disse eu. Muito adulto. Um tanto idiota. Mal sabia o que me aguardava.

Abri a garrafa de vinho, e ofereci um pouco para Marlena. Ela recusou.

- Cláudio não é burro - Ela finalmente olhou para mim. - Acho que ele desconfia de nós.

Pensei que não deveria ter dito aquilo, mas disse mesmo assim:

- Mas está tudo bem. Não tem nada para desconfiar.

Eu também não confiava em Cláudio o suficiente para presumir a inocência de suas ações. Ele havia escondido por detrás de amizade o que sentia por Marlena, e teve coragem suficiente para pedir sua mão diretamente a Marcelo. Ele não jogava para perder, e eu não acreditava que aquele convite era uma bandeira de paz.

Marlena me encarou por alguns segundos. Acho que um minuto inteiro se passou. Era mais do que havia se permitido no último ano. Depois disso, ela se voltou para frente e assentiu.

Te sinto longe de mimOnde histórias criam vida. Descubra agora