Capítulo 9

17 3 4
                                    

Assisti diversas reações no rosto de Marcelo. Sua testa se movia conforme a filha falava, e ele era um misto quase repetitivo de descrença e raiva. Abriu a boca algumas vezes, mas sempre desistia antes de falar. Percebi que era mais baixo que Marlena, e que o rosto dos dois era muito parecido. Ela tinha as mesmas sobrancelhas grossas do pai, e os olhos castanhos dos dois pareciam queimar enquanto eles se encaravam. Marlena havia nascido vinte e dois anos antes, mas acho que Marcelo nunca a havia enxergado antes daquele instante. Ele não disse uma palavra sequer antes de se retirar.

- É melhor irmos também - falou Marlena, os braços cruzados na frente do corpo.

No caminho, ela fingiu que nada aconteceu. Eu até poderia acreditar se não tivesse visto tudo com meus próprios olhos. Marlena falava sobre a escolha do cardápio da festa, comentava que tinha dado muito trabalho para planejá-lo. Era difícil fazer escolhas que agradassem a todos, dizia ela, e eu me perguntei se estava falando mesmo da comida ou apenas pensando alto sobre o que havia dito para seu pai.

Marlena era uma boa mentirosa. Ela sabia esconder o que pensava quando lhe convinha, e você realmente precisava se esforçar para perceber que algo estava errado se ela decidisse omitir o que sentia. Não era porque ela tinha sentimentos por mim que as coisas se tornavam mais fáceis - se havia uma coisa que Marlena fazia bem, era defender os próprios interesses. Se achasse que a informação não era do interesse de terceiros, ela conseguiria acobertá-la quanto tempo quisesse.

Ela já escondeu muitas coisas de mim, de Cláudio também. Não acho que você deve culpá-la por agir dessa maneira. Marlena fazia o que entendia ser certo, e às vezes chego à conclusão de que era um pouco introvertida. Não que tivesse dificuldades em se relacionar com as pessoas: ela era simpática, conseguia manter uma conversa decente com qualquer um. Nada tímida. No entanto, Marlena escolhia carregar alguns fardos em prol das pessoas que amava, e diversas vezes omitiu algumas verdades de mim.

Ela queria me proteger, mas até hoje me pergunto o que teria acontecido se ela não tivesse tentado. Guardava muita coisa dentro de si. Não haviam muitas pessoas ao seu redor que realmente iriam se dispor a ajudá-la, e acho que Marlena sempre soube disso, e por essa razão selecionava muito bem os momentos em que confiaria seus pensamentos.

Quando ela se virou para Marcelo e jogou sobre ele cada palavra que tinha ficado presa em sua garganta, eu sabia que tinha um propósito. Marlena não se descontrolava e dizia o que vinha na cabeça, ela pesava os benefícios das situações que se colocavam em seu caminho. Se resolveu contar toda a verdade para o pai, escondia por detrás de sua pose segura a finalidade do que dizia.

- Preciso retocar minha maquiagem. - Marlena parou e apontou para uma porta à direita dela. - Para chegar ao salão, apenas continue em linha reta até o final do corredor.

Me coloquei de frente para Marlena. Percebi que suas mãos tremiam, e sua bochecha ainda estava vermelha por conta do tapa de Marcelo. Embora fosse novembro, ela passou as mãos sobre os braços como se estivesse tentando se esquentar. A cabeça virada para o lado indicava que estava fugindo do meu olhar.

- Marlena, está tudo bem? - perguntei.

Eu não esperava receber a verdade. Ela estava em sua festa de casamento, e provavelmente a última coisa que queria era descrever seus sentimentos mais profundos para o antigo namorado. Conhecia bem Marlena: ela também devia estar tentando afastar as lembranças da conversa com o pai, como se pudesse seguir a noite com a mesma tranquilidade que a começou. Era hora de se preocupar com os convidados, se eles estavam satisfeitos com a música e a comida, e não trazer à tona os anos de rebeldia que havia deixado para trás.

Ela vacilou por um segundo, e percebi que engoliu em seco. Se eu tivesse fichas valendo os pensamentos de Marlena, teria gasto uma delas naquele segundo.

Te sinto longe de mimOnde histórias criam vida. Descubra agora