JONATHAS
Havia dois dias que eu caminhava pelo campinho de futebol quando reencontrei com Hadassa pela primeira vez, e devo dizer que seguir o conselho de Naná fora mais proveitoso do que eu sequer imaginaria. Falar com ela pela segunda vez fora uma oportunidade que eu não iria perder, e a caminhada valeu a pena. Com alguns imprevistos de bônus, mas ajudou a quebrar o gelo entre nós.
A jovem-menina que eu conheci a pouco parecia esconder algumas coisas mais profundas além da vergonha de cantar. Pude perceber pelo seu olhar quando toquei no assunto. Acredito que toda a dor escondida por trás do bom humor não faça bem para ela. Gostaria de poder ajudar, nem que fosse apenas como ouvinte.
Mas não era hora. Com certeza, ainda não.
Naná não pareceu gostar nada quando falei sobre o caso. Nosso encontro inesperado fez surgir uma expressão assombrada e até cômica em Naná, mas logo depois ela se fechou no espaço particular de seus pensamentos e arrisco dizer até que esboçou um sorriso.
Não cante vitória antes do tempo. Já falei, você ainda não conhece a mãe dela. – Naná dissera. Não me deixei levar pelas suas provocações, e permaneci neutro sobre o caso. Afinal, quem era essa mulher por quem Naná tanto implicava? Imaginei que fosse alegre, assim como Hadassa. Porque ela era o próprio riso em formato de pessoa.
Deixei esses pensamentos de lado e me concentrei na porta de um armário que estava tentando consertar quando escutei um barulho familiar. Era Naná, tentando se levantar da cama, mais uma vez. O som ficou tão reconhecível para mim que eu poderia afirmar isso mesmo se estivesse com rádio ligado, tudo porque as madeiras da cama faziam um chiado esquisito toda vez que Naná fazia um movimento brusco.
Não tenho tempo de recrimina-la, quando chego ao seu lado, porque ela já me lança um olhar reprovativo.
— Pare de me tratar como uma anciã e me deixe sozinha, seu moleque. – resmunga. – Se quer tanto meu bem, então me deixe em paz.
— Tudo bem, Naná? Precisa de alguma coisa?
— Vamos logo, pare de reclamar e saia da frente! – ela me empurra, com pressa. – Ainda sou autoridade sobre você, principalmente enquanto estiver embaixo do meu próprio teto, remelento. – tossiu duas vezes, antes de continuar. – E não cruze os braços assim pra mim.
Franzo a testa e bufo, decepcionado, mas me coloco ao seu lado e permaneço como um fiel escudeiro que segue seu mestre. Já devo ter mencionado que isso acontece quase todos os dias, essa teimosia de fazer certas coisas, mas não especialmente dessa forma. Acontece que Naná tem seus chiliques diários, mas é diferente quando ela coloca essa expressão de dominância no rosto. E me preocupo, até.
Quando Naná tem alguma vontade implícita ou propósito, não importa o que eu diga ou faça, não há ninguém que a impeça. Ela não queria simplesmente checar um cômodo ou fazer alguma atividade, como das outras vezes, para provar que é capaz. Existe alguma outra coisa que está em sua mente, incentivando-a. Não estou enganado ao pensar isso porque tão logo pisamos no quintal, Naná caminha firme e sem parar, em direção ao quartinho. O antigo quarto de ferramentas do vovô.
Ela entra com ousadia e para de súbito, para observar o local. Ele está praticamente do mesmo jeito de anos atrás, quando eu era um garoto pequeno e vinha me esconder quando tinha alguém para brincar. Os mesmos objetos estavam espalhados no local, quase que intocáveis, graças ao conservadorismo de Naná. Ela não deixava quase ninguém entrar ali, principalmente após a morte do cônjuge.
Após alguns instantes, Naná caminhou lentamente pelo pequeno cômodo até parar numa lateral e espalmar a mão sob a parede. Eu sei o que ela estava fazendo. Estava lembrando. Sua expressão de concentração denunciava isso. Seu olhar foi de encontro a porta e segundos depois a estava abrindo, escancarando-a, deixando o ar de fora adentrar junto com os raios solares. Naná se demorou um pouco mais vasculhando entre ferramentas e objetos sem utilidade, e não parou até encontrar uma pequena caixa de veludo preta.
Aquele era seu tesouro pessoal.
Dentro da simples caixinha estavam antigos papéis de carta, uma coleção de selos e moedas, fotos pequenas, uma armação de óculos de grau e outras coisas que eu não podia saber. Eram objetos que fizeram parte da vida dos meus avós e, portanto, faziam parte da história de Naná. Eram os "momentos" que ela havia guardado para se recordar em sua velhice. Eram ajudantes de sua memória, e agentes de felicidade.
De repente, Naná pegou um monóculo e observou-o demoradamente, apesar da vista cansada. Seus lábios esboçaram um sorriso gracioso. Eu tinha certeza, mesmo sem ver a foto, que se tratava de um retrato do falecido marido, ou dos dois juntos. Vô Casemiro era o único responsável por fazer despertar em Naná um daqueles sorrisos.
Após outros minutos, Naná guardou tudo de volta na caixa, com muito cuidado, recolhendo o que havia espalhado sob uma mesinha de madeira. Colocou seu tesouro de volta no local que tinha encontrado e, após suspirar e pensar com seus botões, me olhou de soslaio e saiu do quarto, sem dizer palavra. Não havia mais nada que precisasse ser dito. Eu sabia. Naná já havia me ensinado muito com seus gestos e ações, embora eu soubesse que continuaria aprendendo, de qualquer forma.
Entretanto, pensei no quanto vovô era querido de Naná, que mesmo após dias e dias na mesmice da rotina, vinha reviver suas histórias traçadas pelo tempo. Um sentimento de aspiração me invadiu. Gostaria de ter meus próprios tesouros, no futuro. Quero dizer, além dos que eu já guardo comigo. Quem sabe, poderia mostra-lo para meus netos, e dizer o quanto fui feliz, em algum lugar, em alguma atividade, com alguém. Alguém tão especial que me faria grato mesmo com o passar dos anos, feito Naná.
Não me considero piegas, mas acho que assim deve ser o amor. Ele não pode ser esquecido. E deve ser do tipo que é capaz de nos prender desde o primeiro momento até o último suspiro.
Deixei meus pensamentos de lado e fechei a porta, saindo do quarto e voltando para a casinha de Naná. Ela já tinha se recolhido para o quarto e eu voltei para a cozinha, tentando me concentrar na antiga atividade que antes fazia.
De repente, escuto algum canto distante, vindo do exterior, porque viro o olhar para a janela a procura de algum passarinho pousado na árvore firmada do lado de fora. Automaticamente penso em Hadassa.
O que ela estaria fazendo agora? Será que cantarolando, ou pensando na vida, assim como eu? Espero que não esteja tão confusa. Espero, aliás, que ela também tenha seus próprios tesouros. Ou que também os encontre, algum dia.
Pessoas carismáticas são também as mais frágeis para se decepcionar com a vida.
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Um encontro inesperado
Random➙ Poderia um simples encontro salvar o dia (ou vida) de alguém? SINOPSE: Hadassa é uma jovem de gênio alegre e criativo, mas que sofre certos níveis de ansiedade, principalmente após um desastre natural causar seu confinamento no pequeno povoado int...