10 • Italiano - ANNE

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Eu não aguento mais ficar sem tomar banho. Preciso sair daqui.

Pra fugir? Nem pensar. Eu poderia ir para o meu apartamento, tomar um bom banho, escovar os dentes, e depois voltar para cá. Eu voltaria facilmente e sem reclamar nem por um segundo sequer. Parece loucura, eu sei, mas esse homem é a minha única chance possível até agora.

Mas uma chance que está demorando demais para chegar ao resultado final, principalmente depois do dia quatorze aqui. E já estamos no dia dezoito.

Depois de ter dito de forma tão territorialista que eu pertenço a ele, eu acabei ficando agitada demais, e não foi impressão minha que ele também tenha ficado. Pela primeira vez eu senti vontade de pedir em voz alta para aquele homem me soltar e me foder com força em cima da mesa dele, pela primeira vez também, eu acreditei que ele não negaria.

E pela centésima vez eu me repreendi por ter pensado numa coisa dessas.

Faz quatro dias que estamos em um silêncio quase absoluto, falamos o básico do básico do básico. Eu peço para ir ao banheiro, ele me solta em silêncio e diz para que eu não demore. Eu digo que estou com fome ou com sede, ele busca uma garrafa d'água de quatrocentos mililitros e a costumeira marmita na embalagem de alumínio, só que com arroz, frango e salada. Eu reclamo que meus braços estão doendo e peço para que me solte, o homem sem contestar me solta com a velocidade da luz e diz para eu não quebrar nada.

Não diz para eu não tocar, só para eu não quebrar. Ele não engaja minhas provocações, e olha que eu fui criativa.

Está impossível de conviver com esse homem, ele não gritou comigo uma vez sequer desde o fatídico momento de quatro dias atrás, nem brigou comigo por ter deixado uma caixinha de alfinetes cair no chão, apenas mandou eu me afastar, dizendo que na ponta deles tinha veneno, e eu ia acabar passando mal por dois dias se me furasse com eles.

Eu também tentei provocá-lo com isso, o chamando de fofo e dizendo que ele estava preocupado comigo, esperando que o moreno ficasse irritado e impaciente o suficiente a ponto de fazer aquilo que gosta: fingir que vai me matar. Mas não aconteceu absolutamente nada. Ele não fez nada além de suspirar e mandar eu sentar na minha cadeira antes que eu deixasse alguma coisa maior cair em cima de mim.

Devo ser a única vítima de sequestro na face desse planeta que sente falta da rudez do seu sequestrador, que sente falta da voz dele. Falando assim, parece que eu tenho algum problema na cabeça, não é? Eu tenho quase certeza que sim, porque a última coisa que alguém que se sente sexualmente atraída pelo seu sequestrador e sente falta do modo de agir dele é, é normal.

E eu definitivamente não me orgulho disso.

Quase um mês. Quase trinta dias aqui e tudo o que eu quero é morrer logo, no entanto, estou começando a acreditar que isso vai acontecer muito, muito mais tarde do que eu espero, porque a pessoa que deveria estar disposta a me oprimir, ameaçar, torturar e matar, parece ter perdido completamente o interesse por mim.

Talvez fosse mais fácil se eu não sentisse tanta sede de sentir a morte e tivesse pelo menos um pouco de medo dele. Assim eu choraria e gritaria com ele, pedindo por favor para que ele poupe a minha vida, diria que tenho amigos, tenho um trabalho, tenho sonhos, sou nova e não vivi nada, pediria piedade.

Seria um milhão de vezes mais fácil se eu fosse a porra de uma pessoa normal.

Um estrondo de algo caindo no chão e se quebrando me arranca violentamente do meu devaneio. O Carrancudo derrubou uma coisa de vidro, algo como um vaso, mas eu sei que era de vidro transparente e tinha um formato cúbico porque ficava no meio da mesa dele. O negócio era bem pesado, sei disso porque tentei o pegar para ver o que tinha dentro mas levei um tapa na mão.

- Ma che diavolo - Resmunga aborrecido. Eu abro um sorriso.

Bingo! Sempre que ele xinga baixo é nessa língua, eu estou entre espanhol e italiano, parece muito com os dois. E é tão satisfatório ouvi-lo falar com o sotaque tão forte e marcante.

- Ficou sem força para pegá-lo? - Resolvo provocar - Você precisa malhar mais, não conseguiu nem segurar o negócio.

Ele nem me olha.

- Ou está sem força, ou está nervoso. - Continuo, sem sucesso - Dos dois um.

O homem nem se dá ao trabalho de fingir que me ouviu. Que interno. Ele se abaixa para pegar os cacos maiores e começa a colocá-los numa caixinha de papelão que abriu justamente pra fazer isso.

Em certo momento, vejo sua mão tremer. Essa é a minha deixa.

- Oh! Está nervoso. - Eu sorrio brincalhona - Tem algo importante para hoje? Alguma coisa interessante o suficiente para te deixar com as mãos tremendo? - Arqueio a sobrancelha de forma sugestiva.

- Vai all'inferno. - Ele resmunga baixo. Tão baixo que se fosse um pouco mais eu não teria escutado.

Mas escutei, só não descobri qual o idioma ainda. Decido intensificar a petulância.

- Meu amigo ficava assim sempre que tinha um encontro marcado. - Eu abro um sorriso grande - Você tem um encontro! Está nervoso por isso! - Dou risada - Eu não acredito que você tem um encontro! Não pretende matar a pessoa, não é? Não é assim que encontros funcionam.

Seus olhos vem até mim por um mísero segundo, foi rápido demais, mas captei seu olhar. Ele está irritado.

- Volevo così tanto uccidere questa donna. Inferno. - Meu cérebro demora alguns segundos para finalmente identificar.

BUM!

Conheço essas três primeiras palavras, já flertei com um italiano, ele as disse quando sussurrou para mim que queria dançar comigo.

- Italiano. - Constato em voz alta. Mais alto do que eu deveria.

As íris castanhas-esverdeadas voltam-se para mim no mesmo instante. Ops.

- Como é que é? - Questiona tombando a cabeça um pouco para o lado. Eu engulo em seco, ele já ouviu, não tem porque me fazer de desentendida.

E bem, seria bom discutir um pouco pra variar.

- Você fala italiano. - Confirmo. O homem começa a negar com a cabeça, aborrecido.

- Isso não é da sua... - Ele para. Para por alguns segundos e me olha com raiva - Ficou me provocando de propósito só para descobrir a porra da língua que eu falo? - Eu hesito.

- Não.

- Mentira. - Rebate de forma acusatória.

- Não é mentira! - Minto de novo.

- É sim, e você sabe que é. Qual é o seu problema? Será que não consegue...

E quando uma alegria esquisita começa a me abraçar por ter conseguido irritá-lo e o feito discutir comigo, o moreno simplesmente para. Para e fecha os olhos, negando novamente com a cabeça como se estivesse lhe repreendendo por estar engajando nessa discussão.

Ao invés da alegria, uma frustração nubla meu peito quando percebo que ele não vai mais discutir ou brigar comigo, e começa a se levantar para pegar seu sobretudo.

- Onde você vai? - Questiono imediatamente.

- Não interessa. - Diz rudemente, sem no mínimo o olhar nos meus olhos - Alguém vem aqui limpar esse vidro e o lugar. Se tentar qualquer coisa, eu vou saber, e vou te deixar de volta onde peguei. Não brinque comigo.

Nem tenho chance de discutir ou de xingar ou de qualquer coisa que seja, porque o homem vira as costas e me deixa, tão rápido quanto um ladrão fugindo da polícia. A porta bate com força, dando últimos indícios de que ele saiu mais irritado do que parecia.

E eu? Eu fico aqui. Presa, entendiada, me sentindo sozinha sem a sua presença, mesmo que silenciosa. Eu ainda podia sentir o seu cheiro, ouvir sua respiração e seus resmungos, mas agora não tenho nada.

Só um tempo depois, uma garota morena, parecendo ter a minha idade, entra aqui e sem se importar com minha presença, limpa o vidro que o Carrancudo quebrou e o resto do galpão, desligando a luz ao sair e me deixando num escuro silencioso que eu odeio.

Dirty Love • AU shirbert • EM ANDAMENTOOnde histórias criam vida. Descubra agora