Quando a chama se apaga

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O tempo sempre se esvai e a vida sempre dá um jeito de rir às nossas custas. Talvez não ria, mas é o que bem parece. De qualquer forma, o tempo se esvai, sobre a risada irônica e gélida dos acontecimentos (ou não). Mais um ano passou, e depois outro e outros tantos, mais um tempo marcado pela ausência e dores da vida.

Ana já havia temido antes, eram momentos de angústia, mas dessa vez ela permitiu que pequena dúvida emergisse em seu peito e ali crescesse.

Será mesmo que Pedro voltaria? Viveria ela para sempre como viúva sem saber se o marido  ainda vivia ou não? Lutaria tão dura batalha tentando ser boa e fazer o que era correto, apenas por uma vaga promessa?

Imagino eu que a vida riu de Ana, se não a vida, ao menos uma das vizinhas.

Ela repassou sua vida nos últimos anos diante dos olhos. Olhos esses que antes brilhantes, agora carregavam o embaçamento da dor, a pele ao redor deles estava marcada por finas linhas de expressão que apareciam no contorno dos olhos claros. Em seus cabelos escuros, uma ou duas  mechas brancas já se notavam. Envelheceu durante a espera, mal se dera conta. Acontece que a vida é um sopro e ela passa muito rápido.

Ana estava cansada e na vida muitas vezes a gente cansa da própria vida. Não é sempre fácil nossa existência debaixo do sol, ainda mais em momentos como aquele, vivendo presa ao vilarejo, escutando ao longe os rumores da guerra, o som impiedoso de canhões e o agudo tinir de espadas, sendo zombada e rejeitada pelos vizinhos, e o pior de tudo, ainda sem notícias do marido. Ana tinha sido forte, mas até os fortes uma vez ou outra convalesciam.

Lembrou-se de quantas pessoas ajudou e de quanta ingratidão recebeu como pagamento. Lembrou de quanto dinheiro perdeu alimentando os famintos e dando às autoridades o que com tanto esforço conquistava. Lembrou das festas que perdeu por estar tão atenta ao retorno do marido e ao cuidado da fazenda que ele lhe deixou. Lembrou das propostas de casamento e ajuntamento que recebeu e que talvez lhe teriam garantido uma vida mais confortável e menos trabalhosa. Lembrou do patinho que nadava no lago pouco depois do marido partir e lamentou severamente não se  sentir tão cuidada e despreocupada como aquela criaturinha.

Sentada na sala de casa que há tanto precisava de reformas, repousava na poltrona seus temores e olhava a estrada que parecia cada vez mais distante. Será que Pedro ainda voltaria?

Nós, como humanos e vendo tão pouco da perspectiva da vida, duvidamos, sendo assim, não julgo Ana. A alma por vezes se encolhe no peito e não há alento.  Foi então que apareceu à janela de Ana, ocupando a visão da estrada, o menino que cuidava das cabras. Agora já era um rapaz, estava noivo de uma das meninas do Vilarejo, mas ainda trabalhava para a Ana.

"Boa tarde, dona Ana." ele disse.

"Boa tarde, Henry!"

"Eu vim me despedir, senhora."

"Já acabou o trabalho do dia. Muito bem!" Ana aplaudiu.

"Não, senhora." disse Henry estendendo para Ana uma folha de papel cor de creme com relevos e palavras escritas.

A folha balançou ao vento, mas Ana não se levantou para pegá-la. Não sabia ler, mas reconheceria o selo do imperador em qualquer lugar. Ela mesma já tivera em suas mãos um papel como aquele antes. Foi um papel como aquele, bonito e elegante que lhe condenara a pior das condenações e levou dela seu marido amado.

"O que é isso? O que diz aí?" ela perguntou temerosa.

"Fui chamado para a guerra, dona Ana. Preciso partir amanhã."

"Ah, Henry. Sinto tanto." Ela se enterneceu.

"Não sinta. Estou bem com isso. Tantos homens melhores que eu também foram chamados. Lembro do seu marido, que bom homem ele era." disse Henry.

"Muito bom mesmo."

"Tenho orgulho de seguir os passos dele e isso me dá coragem. Vocês dois sempre foram tão bons para mim." ele disse emocionado.

A verdade é que o outrora menino das cabras era um órfão, que foi adotado pelos tios paternos e morava em uma das casas mais pobres do Grande Vale da Esperança. Ana e o marido sempre fizeram o que podiam para ajudá-lo. Como o menino era um pequeno orgulhoso que não aceitava esmolas, lhe ofereceram um trabalho e assim foi por muitos anos.

Ana se levantou da poltrona, caminhou até a janela e estendeu as mãos para tocar-lhe a face. Ainda era para ela um menino, seu companheiro no trabalho da fazenda.

"Queria agradecer antes de partir." ele disse.

"Não por isso. Não fiz tanto quanto gostaria." Ana lamentou.

"Fez muito sim, senhora. Cresci tendo meu caráter moldado por suas atitudes e conselhos. Conselhos esses que recebeu de seu marido. Tive minha resignação e disciplina influenciados por suas ações e bondade. Aprendi sobre o homem que queria ser observando a mulher que a senhora era, tão piedosa, fiel, forte e resiliente."

Ana suspirou sem saber como responder. Por vezes só precisamos ser lembrados de quem somos para que a longa jornada adquira novamente seu sentido. Os elogios e falas de Henry não atingiram o orgulho ou o ego de Ana, mas sim tocaram em um lugar mais profundo e reviveram suas lembranças. Lembrou-se de quem ela era e porque havia feito tudo quanto fez. Era a esposa amada de Pedro, por ele esperava e por ele vivia.

Havia se permitido um momento de desânimo e esses às vezes eram necessários, mas teve naquele momento reavivada em seu coração a esperança que antes enfraquecia.

Mesmo os mais antigos e experientes marinheiros e viajantes, cansam de longas viagens e temem as condições do tempo. Mas tão logo eles vêem adiante um pouco de terra firme, seus corações se enchem de ânimo novamente.

"Obrigada, Henry." Ana agradeceu. Não agradecia por suas palavras, seus elogios e afagos, mas por fazer seus olhos avistarem terra seca. Por despertar novamente nela sua vivacidade e amor.

Se apenas a Henry suas ações tivessem atingido, já teria valido a pena. Lembrou-se do tempo  em que era bom esperar e que devotava tanto amor ao seu marido que nunca se abatia.

"Pedro não estava aqui, mas eu vivia como se estivesse." Pensou.

Viu queimar como brasas vivas novamente a chama da esperança que quase havia virado cinzas. Independente do que aconteceu ou fosse ainda lhe acontecer, ela o esperaria, afinal, ele disse que voltaria.

Despediu-se de Henry como uma mãe se despede do filho, o coração apertado e aflito, também se orgulhava. Foi ele para a Grande Guerra sobre os conselhos e carinho daquela mulher que tanto observou enquanto crescia. Mesmo sem saber, Ana muito o influenciou e ensinou, apenas  por viver como vivia, da forma como Pedro havia lhe sugerido.

Ele disse que voltaria (Conto Cristão)Onde histórias criam vida. Descubra agora