Ouviu-se um barulho pelo Vale, de casa em casa faziam-se reclamações e protestos. Aquele havia sido um ano difícil e penoso, se bem que todos os anos possuem suas próprias dores e motivos distintos para lamentar.
Até aquele dia, sobreviveram os que puderam e como podiam. A guerra, os dissabores da vida cotidiana, doenças, medos, a ausência de solução para os problemas comuns do mundo, tudo pesava sobre os ombros de todos, sem piedade ou descanso. Trabalhavam exaustivamente, como atores em uma peça desempenhavam seus papéis sem jamais se esquecerem que aquela não era de fato suas vidas e sem permitir que seus espectadores se dessem conta disso.
Aquela visita foi a gota d'água. Seus ânimos estavam há muito tempo alterados, é muito fácil perder a paz e às vezes isso ocorre por causas tão efêmeras. Não era um caso tolo dessa vez, mas a ira também não era tão justificada.
Imagine o barulho e irritação quando depois de um ano com tantas notícias ruins sobre a Grande Guerra, tanta perda e sofrimento, receberam no Vale a visita do representante do chefe da província? Aquela visita só significava uma coisa, que todos os moradores sabiam: mais ainda lhes seria tirado.
O homem vivia em um casarão com ares de fartura e proteção. Nem ele ou seus filhos foram chamados à guerra, suas filhas e mulheres não precisavam trabalhar pelo sustento. Esse homem, denominado chefe da província pelo imperador, mandou seus guardas ao vilarejo cobrar os impostos de outono. Era uma lei que havia sido instituída uns 3 anos depois do início da Guerra. Diziam os chefes das províncias que o objetivo era fornecer suprimentos e armas aos homens que lutavam para que assim se alcançasse mais rápido a paz. No entanto, anos depois a Guerra ainda acontecia de forma indomável. Sem paz, sem repouso... A cada ano um pouco mais era tirado dos sobreviventes. Suas vidas, seu trabalho, suas forças, sua esperança.
De cada casa, da mais pobre feita com palha e barro, a mais majestosa feita de pedras, seria recolhido um conto e o equivalente à produção que a força de trabalho lhes permitia.
As costureiras "doavam" tecidos, casacos e mantas. Os vendedores deveriam ceder parte de seu tabaco e suas bebidas. As donas de casa "entregavam" parte das plantas do quintal que iria no prato de seus filhinhos. Cada casa era avaliada e recebia as ordens do chefe das províncias.
Ana recebeu sua lista de impostos: 1 conto, 2 galinhas, 1 bezerro ou 1 cabrito, 1 cesto de frutas e 2 cestos de verduras, ervas e especiarias.
O menino que cuidava das cabras leu para Ana a lista e ela lamentou-se um pouco, mas logo começou a preparar o que deveria entregar como imposto. Não questionou se haveria nisso tudo justiça, sabia que a justiça desse mundo por vezes é falha e maldita. Além do mais, Pedro estava na Guerra. Talvez fosse para ele que enviaria aquelas coisas. Era melhor pensar assim às vezes, do que lamentar por coisas que não poderia mudar.
Alma viu Ana agitada, colhendo maçãs, alecrim e tomates. O menino das cabras ia andando atrás de Ana e conduzia com lágrimas nos olhos um pequeno cabrito.
"O que se passa, Ana? Para que tanta comida?" perguntou a vizinha.
"São para os impostos, dona Alma. Não recebeu as ordens ainda?"
"Recebi sim, mas ignorei. Você irá se sujeitar a esse disparate?" A vizinha perguntou.
"São ordens das autoridades!" Ana falou.
"Os guardas vieram aqui agora mesmo." Completou o menino.
Ana lembrou do marido a lhe dizer "Sujeite-se às autoridades, elas foram assim instituídas por um motivo, quem fizer o certo não terá o que temer."
Dulce exasperou-se ao ouvir as vizinhas conversando e logo se aproximou.
"Ninguém aqui deve contribuir. Estão todos reclamando e com razão. É uma injustiça sem tamanho tirar tanto dos que nada tem."
"Sei bem disso, Dulce e não lhe tiro a razão. Mas o que podemos fazer? Enquanto estivermos lá fora a Grande Guerra, essa é a lei. Mesmo que não concorde, ainda assim cumprirei." Ana disse.
Maria estava por perto e ao ver as vizinhas também se aproximou.
"Falam sobre os impostos? Não sejam tolas. Protejam o que possuem e faça como eu, escondam parte dos seus bens, entreguem menos do que pedirem, se reclamarem se justifiquem: foi um ano difícil!" Maria sugeriu.
"Isso mesmo, precisamos nos rebelar!" Dulce concordou. "Vamos dizer que temos bem menos do que de fato temos. É uma ideia muito esperta!"
Na mente de Ana surgiram outras das palavras de Pedro.
"Sempre diga a verdade e sempre haverá luz em ti, minha Ana. A mentira pode te trazer alívio temporário e até algum benefício, mas são passageiros e ela logo te prende em uma teia de catástrofe e escuridão."
"Senhoras, haverá um momento em que precisaremos nos posicionar e lutar, mas creio que esse tempo ainda não chegou. Além disso, a mentira pode nos colocar em problemas!" Ana aconselhou.
As vizinhas riram. Não iriam sair perdendo, não iriam cumprir a risca lei tão absurda. Ana era louca em obedecer às ordens do chefe da província.
Ana agradeceu o conselho das vizinhas, mas manteve-se firme em sua resolução. Pagaria o que era certo, mesmo que depois lhe faltasse. Poderia trabalhar e conquistar mais depois. Sempre viveu dentro da lei, por que por tão pouco desobedeceria?
Ela disse a quem lhe perguntasse o que faria e incentivou tantos quantos podia a fazerem o correto, pagar o que o chefe da província pedia.
Os espertos que querem sempre tirar vantagens, por vezes encontram em seu caminho alguém mais esperto que eles e acabam por serem passados a perna.
Voltemos às vizinhas que se mantiveram em seu plano de enganar as autoridades no recolhimento das ordens de impostos. Tão convictas de sua causa, riam e contavam vantagens.
No dia do pagamento, imagine tamanha felicidade e posterior agonia. Ana assim como os outros que entregaram tudo quanto foi pedido, partiram em paz para suas casas e os guardas disseram que em breve as autoridades os restituiriam. Se me permite dizer, dentro de alguns anos, a promessa ainda não teria sido cumprida, mas eles foram isentos dos impostos nos dois anos posteriores e isso já era alguma coisa.
Os que se recusaram a pagar ou deram menos do que deveriam tiveram suas casas e celeiros invadidos, seus bens foram saqueados, mulheres e crianças foram agredidas. Foi uma cena triste e lamentável para todos os que assistiram. Levaram semanas até reconstruir e organizar todo o caos deixado para trás.
Se não há razão para rebelião, é tolice correr o risco de enfrentar os poderosos do império, Ana bem sabia. Pedro também havia dito que nem toda batalha merecia ser travada e que era sábio saber quanto lutar e quando se render.
"É preciso ser tão astuta quanto corajosa para saber o que fazer, Ana."
As maiores revoluções, nasceram no secreto e foram alimentadas por sujeição e obediência. Surgiram da necessidade de fazer o que era justo e correto e não visando interesses próprios
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Ele disse que voltaria (Conto Cristão)
Short StoryAna e Pedro estão recém casados, eles são apaixonados e vivem bem em sua casinha de fazenda em um vilarejo pobre da província de Promisses, até que o imperador convoca Pedro para a Grande Guerra. Pedro parte para o campo de batalha e Ana fica para t...