Há uma noite no ano em que os mundos se misturam, e as fronteiras do tempo desaparecem. As pessoas do passado, do presente e do futuro passam umas pelas outras nas ruas, sem sequer serem notadas. Os cantos das bruxas ecoam seus presságios agourentos na escuridão, e é possível viajar através das linhas do tempo apenas com a luz de uma lanterna.
Essa é a noite mais perigosa do ano. Noite dos monstros, das bruxas, dos deuses obscuros cujo nome nós não mencionamos. Noite em que alguns humanos se perdem entre as Marés do Tempo e vagam por cem anos, presos à névoa da loucura. Noite em que as mães tecem cantos de proteção e envolvem seus filhos em fantasias para que os monstros não os reconheçam.
Mas acima de tudo isso, é a noite em que crianças acham perfeitamente aceitável amaldiçoar sua casa se você não tiver doces para dar.
Sim, sua casa, no Brasil, pode ser amaldiçoada se você não responder direito ao "gostosuras ou travessuras?". Não que a maldição fosse pegar, é claro. Mas Alexander Schüch ainda exibia uma expressão bastante perplexa quando voltou para dentro e encontrou Suzana sentada no sofá, lendo um livro de terror qualquer.
― Desde quando nós comemoramos o Halloween?
Ela levantou os olhos do livro.
― Não sei quando as crianças do bairro começaram a fazer isso... Mas nós já temos uma coleção de maldições, porque todo ano você esquece de comprar os doces.
— É porque não faz o menor sentido. A gente tá no Brasil! Por que eu tenho que me lembrar de comemorar uma data que nem faz parte da minha cultura?
―Você pode chamar de dia do Saci, se isso fizer se sentir menos culturalmente colonizado. Mas não se esqueça que você é assinante da Netflix, usa um Iphone e adora comer no Johnny Rockets.
― E com "nós temos uma coleção de maldições", você quer dizer você e o Crownley, não é? Esqueceu que eu não moro aqui?― Alex colocou as mãos na cintura. O cachorro vira-lata caramelo veio correndo da cozinha ao ouvir seu nome.
― Alexander Schüch. Você passa cento e trinta dias do ano aqui nessa casa e só volta pra Áustria no verão. Você passa todos esses dias comendo e dormindo aqui. Aliás, quando foi que você tomou esse gosto por dormir?― Suzana agitava os braços, fazendo Alex sorrir, ao lembrar que ela repetia aquele gesto desde os seis anos de idade. Ela pretendia continuar a bronca, mas acabou interrompida pelo toque do celular. Uma chamada de vídeo.
― Ah. Olha só. É o Lennon. Sabe o que isso quer dizer?― Ela sacudiu o celular diante dele.
― Problemas, transtorno, mentiras pra contar, papelada pra assinar... ― Alex revirou os olhos. Se jogou no sofá e cobriu a cara com uma revista National Geographic, uma edição que falava sobre rituais pagãos celtas.
― Qual é, Lennon?― a voz de Suzana soou animada.
― Então, chefa... Como é que eu começo... ― A tela do celular exibia um rapaz de vinte e poucos anos, magro, cabelos longos, nariz comprido e óculos de grau redondos. ― Umas câmeras de segurança perto do Bosque do Papa pegaram umas coisas suspeitas. Um objeto voador não identificado. Mandei um drone do Sindicato seguir e descobri que era uma bruxa passeando de vassoura. Mas só passeando mesmo. Nenhum relato de desaparecimento de criança, nem de rituais mágicos. A mulher só tá zanzando por aí sem rumo. Mas achei melhor relatar né. Toda semana tem alguém tentando iniciar o Apocalipse, porque no Halloween seria diferente?
― Escutou isso?― Suzana olhou para o rosto de Alex encoberto pela revista. Crownley subiu no sofá e arrancou a publicação de cima do rosto do imortal.
― Como é que a bruxa estava vestida, Lennon?― Alex se dirigiu ao aparelho na mão de Suzana.
―Ah! O Barão tá aí? Meu Deus, Seu Alexander, senhor... Boa noite. Então... Ela tinha umas fitas e conchas presas no cabelo... E uma faixa verde-musgo amarrada na vassoura...
Suzana e Alex se entreolharam.
―Yari!― os dois disseram ao mesmo tempo.
―Tudo bem, Lennon, pode continuar sua patrulha e deixar que o Alex cuida disso.― Suzana abanou a mão.
―Eu?― Ele arregalou os olhos.
― Não, meu cachorro! É claro que é você, estrupício!― Ela balançou a cabeça. ―Vai lá e fala com aquela maluca. Dá os parabéns e chama pra comer uma pizza, afinal é o dia dela.― Suzana se voltou mais uma vez para o celular. ― Ela ainda tá no Bosque do Papa?
― Não, a gravação é de meia hora atrás. ― Lennon respondeu.
― Ah, tudo bem, a gente dá um jeito de encontrar a bruxa. Qualquer outra ocorrência sobrenatural, me avisa.
Suzana se despediu e encerrou a chamada, Alex se levantou do sofá desanimado.
― Vai querer alguma coisa da rua? ― Ele perguntou enquanto vestia um casaco marrom e uma boina que estavam pendurados em um gancho perto da porta da sala.
Suzana chamava aquela combinação de disfarce de velho, mas ela estava errada. Alex não estava disfarçado de velho, ele era uma pessoa velha. Mesmo que depois de tanto tempo sua aparência ainda fosse a mesma, mesmo que para a maioria das pessoas fosse fácil se esquecer disso, ele não se esquecia. Ele contava os compassos que marcavam a passagem do tempo. Sentia a música se esvaindo entre seus dedos todas as vezes que entrava em uma loja de discos na Boca Maldita e pedia por alguma banda dos anos 1980. A moça tatuada o conduzia até uma ala dedicada ao "rock clássico". E Alex nunca pensou que veria as palavras "rock e clássico" juntas, mas ali estavam elas.
Então ele voltava para a casa no Jardim Botânico, a casa de Suzana, e ela estava sentada no sofá jogando videogame, ou lendo um livro, ou gritando com alguém ao telefone. E o tempo a envolvia, a carregava e marcava a pele dela. A Suzana de mais de quarenta anos que Alex via misturada à Suzana de seis, e a de quatorze, e a de vinte e a todas as Suzanas que foram e as que ainda viriam.
O tempo sempre se fazia notar para todos, exceto para ele.
― Ouviu o que eu disse? ― Suzana o arrancou de seu devaneio. ― Traz uns doces. Baba de bruxa, pipoteca, essas coisas... Se mais um grupo de crianças jogar maldição aqui, eu vou ter que chamar o pastor da tua igreja pra fazer uma sessão de descarrego na casa.
― Mas eu sou luterano.
― Eu não ligo! Vai logo, antes que a Yari jante alguém!
Enquanto Alex e Suzana discutiam, não perceberam a campainha baixa e suave tocando. Aquilo havia sido um pedido de Alex, há mais de dez anos, quando Suzana comprara a casa.
Como tudo o que acontecia quando os dois amigos estavam juntos, eles se deram conta ao mesmo tempo do barulho e gritaram no mesmo tom de irritação.
— JÁ VAI!
— Se for criança malcriada de novo, sou eu quem vai lançar uma maldição. Vou transformar todo mundo em rato, igual a Angelica Houston naquele filme... — Alex foi até a porta batendo os pés. Abriu a porta e se deparou com uma mulher branca de cabelos escuros, vestindo um vestido verde mal acabado e um corpete.
— Alex... Me ajuda... ― A maquiagem da bruxa estava borrada e seus olhos estavam cheios de lágrimas.
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O Halloween de Yari (Conto)
Short StoryÉ dia 31 de outubro de 2015, e Alex não comprou doces para distribuir no Halloween. Agora, um grupo de crianças raivosas está amaldiçoando a casa de Suzana. Não que a maldição vá pegar, é claro. Mas se tratando da única noite do ano em que os...