Yari jamais se envolveu nos assuntos dos humanos desde que a alma do último Imortal de seu mundo partiu para a Eternidade. E, com o passar dos anos, as pessoas passaram a confundir as omissões e o silêncio da bruxa com bondade. Se ela não faz o mal, então faz bem, era o que se pensava.
Mas, como toda bruxa, ela possuía algo essencialmente mau. Um rancor enraizado e irascível contra a humanidade. O mesmo rancor que a manteve viva durante os anos mais escuros de seu mundo, o mesmo rancor que sustentava seu corpo imortal e o mantinha indestrutível, o mesmo rancor que, lentamente, arrancava cada resquício de humanidade que lhe restava.
Nem sempre ela notava quando algo desaparecia, tanto que levou duas décadas para perceber que já não se lembrava de seu nome de batismo. E passou-se quase um século até que se desse conta de que não tinha qualquer memória de quem foram seus pais. Ninguém podia julgá-la por isso, na maior parte do tempo, ser humana era apenas um grande incômodo. Mas naquela manhã, Yari sentiu que havia esquecido alguém importante. Alguém que ela amava.
E foi com essa descoberta aterrorizante que, sob o olhar atento de seu coelho Roger, a bruxa revirou sua torre de alto a baixo em busca de qualquer resquício da existência da pessoa esquecida. Mas não encontrou nada. Porque nada sobrevivia ao tempo. Nada, exceto a bruxa e seu coelho enfeitiçado.
As coisas permaneciam imunes ao tempo apenas em um lugar no Cabo Sul. Um lugar onde nada envelhecia. O Olho de Aldara. Mas apenas em uma noite como a daquele dia ela poderia se jogar nas águas do tempo sem ser apagada da existência. Na Noite de Todos os Santos. O único dia em que os Juízes dormiam. Todos eles. Outros guardiões, menos poderosos e menos atentos, vigiavam o universo. Yari sabia quem poderia ajudá-la. Em que tempo e em que realidade aquela pessoa poderia ser encontrada. E ela foi ao seu encontro.
— Não tem nada mais patético do que uma das mulheres mais poderosas do universo chorando igual uma adolescente que levou um pé na bunda! — Suzana cruzou os braços diante da bruxa.
Yari bebia um copo de água para se acalmar, enquanto Suzana ouvia sua história e Alex falava alterado ao telefone.
— ... Eu não quero saber, acordem ela, coloquem todos os carros de mensagem ao vivo que conseguirem encontrar na frente do Bosque do Papa! Mas eu quero aquela mulher acordada e aqui na casa da Suzana pra ontem! Como é? Eu não tenho autoridade pra invocar alguém como ela? Como é seu nome mesmo? Vanessa... Cadê a Eduarda? De férias? Como assim? Ok. Tá... Deixa quieto, então. Boa noite. Desculpa os berros...
Alex se jogou em uma poltrona, desanimado.
— Já falou com algum dos outros Juízes... Sei lá. Vai que algum deles têm insônia... — perguntou Suzana, pegando o copo vazio da mão de Yari e levando para a cozinha.
— Estão todos indisponíveis. Os de todas as épocas e realidades. Os espelhos de ver estão escuros, não dá pra acessar o futuro. E os da nossa época não atendem os celulares... É uma tragédia. Deixaram o multiverso todo na mão do Lennon. Mano do céu... — Alex passava as mãos pelo rosto, irritado.
— Que maldade com seus outros subordinados, Barão. — Suzana jogou um beijo para Alex da porta da cozinha, e Crownley latiu em acordo. — E a sua mulher, já ligou pra ela?
Alex murchou no sofá como uma pedra de gelo derretendo.
— Ela também está dormindo. E nem está nesse planeta, então... Argh...
— Oh, céus! O pequeno Alex... O meu pequeno Alex casou? — Yari deu um pulo na cadeira — Quantos anos se passaram?
— O bastante pra eu ter que usar creme debaixo dos olhos à noite se não quiser parecer uma jabuticaba murcha. Desembucha logo o que você veio fazer aqui, bruxa, que eu tô sem tempo. Na verdade eu tenho todo tempo do mundo, mas eu não tô afim de ficar sendo sua babá, então... Ah, vai, desenrola!
— Eu já contei tudo o que eu me lembro. — Yari respondeu.
— Mas você só se lembra de acordar hoje de manhã e ter esquecido alguém que você não faz a menor ideia de quem seja! Isso não ajuda em nada. A gente não sabe nem se essa pessoa existiu de verdade ou se você só fumou erva estragada ontem à noite. — Suzana agitou os braços.
— Ele existiu! — Yari gritou. Então começou a rir. — Ele! Era um homem. Era ele... Eu tenho quase certeza.
— Ah, que ótimo! Então aposto que você realmente levou um pé na bunda. — Suzana resmungou.
— Consegue se lembrar de mais alguma coisa? — Alex perguntou.
Yari ponderou por alguns minutos.
— Neve. Muita neve, neve de verdade, como... Como no Longo Inverno. Eu tenho quase certeza de que a última vez que eu o encontrei foi no final do longo inverno. Tinha um lugar... Uma praia com um castelo... Como era o nome mesmo...?
— Eu acho que sei que lugar é esse... — Alex disse.
— Sabe? — Suzana arregalou os olhos.
— É na Linha Um, me levaram lá uma vez há muito tempo... — Ele se levantou do sofá. — Vamos! Se a gente sair agora, acho que dá pra voltar antes dos poderosos acordarem.
— C-como assim? Como assim vamos? Não tem nenhum portal aqui, nenhuma dobra de tempo, nem uma cava que leva para as águas temporais, como Aldara... — Yari gaguejou e só parou de falar quando Alex começou a rir.
— As coisas mudaram bastante desde a última vez em que você me encontrou. Anda logo! Eu quero assistir a Maratona Zé do Caixão ainda hoje. — Ele estalou os dedos e a porta da frente se abriu. Mas não levava à rua Lothario Meissner. Yari reconheceu o lugar de suas lembranças. Uma praia de areia escura, banhada por um mar cinzento. E no alto de uma falésia, uma enorme fortificação. Bandeiras com flores de melissa em tons púrpura e lavanda tremulavam nas torres. — Vamos!
Yari respirou fundo e segurou a mão que lhe era estendida.
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O Halloween de Yari (Conto)
Short StoryÉ dia 31 de outubro de 2015, e Alex não comprou doces para distribuir no Halloween. Agora, um grupo de crianças raivosas está amaldiçoando a casa de Suzana. Não que a maldição vá pegar, é claro. Mas se tratando da única noite do ano em que os...