grande, pesado, sem raiva

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Capitulo 3 - grande, pesado, sem raiva

E sua tristeza era um cansaço grande, pesado, sem raiva.

Clarice Lispector

Foi a primeira vez que aquilo me ocorreu.

Eu senti culpa por não ter respondido a tempo as mensagens, por ter esquecido daquele Kim Taehyung no meio de todas as tarefas que eu tinha a fazer e também de ter dormido tão tranquila enquanto ele aparentava - pelas mensagens, pelo fuso-horário - não ter dormido  nada.

Eu imaginava aquele estrangeiro como um passaporte para minha liberdade e aqui explico que liberdade, para mim, não é bem poder sair a todos os lugares, mas sim poder, ter condições de ficar em um só lugar e isso eu não tinha. Nunca tive, na verdade.

Eu estava sempre a partir e aquela seria minha oportunidade de ficar: ser livre.

Era egoísmo misturado com empatia enquanto eu relia as mensagens dele que claramente havia passado a madrugada esperando. Por isso, logo que tomei meu café da manhã, liguei para o número que estava estava no rodapé dos e-mails.

Eu esperava calma, mexendo nas minhas unhas pintadas de vermelho até que a primeira ligação caiu na caixa postal. Na segunda tentativa, eu notei que estava ficando com a respiração um tanto mais pesada, não como se eu estivesse cutucando o esmalte, mas sim correndo uma maratona sem ser maratonista.

Era a mesma sensação daqueles momentos finais de um julgamento, quando eu já havia dado tudo de mim e nada mais estava nas minhas mãos: restava torcer pela justiça e apenas observar  o que acontecia, de mãos soltas, mas atadas.

Eu conseguia fingir que não era sufocante. Não há nada como o hábito: você se acostuma.

A voz dele no meu ouvido foi como um ralo subitamente destampado que sugava com violência toda água ao seu redor. Quer dizer, eu havia visto algumas fotos dele.

Um menino.

Com um grande sorriso quadrado, pintinhas fofas, alguma maquiagem nos olhos e na boca.

Eu não esperava uma voz tão viril do outro lado do telefone, falando coisas que eu não entendia. Eu respondi em inglês e acabei gaguejando como eu não pretendia. Ouvi um pequeno alvoroço do outro lado da linha.

Ele parecia estar com várias outras pessoas e afastei um tanto o telefone da orelha por conta do barulho, mas logo tudo ficou mais silencioso. Agora era uma mulher que falava ao telefone, em inglês, mas eu estava atenta suficiente para perceber a voz dele logo ao fundo, ao lado da dela.

A primeira coisa que fiz foi pedir sinceras desculpas pela demora.

A primeira coisa que ele fez foi perguntar se o dinheiro seria suficiente.

Era outra pessoa que falava por ele, mas dava para perceber sua urgência.

— A situação está- — houve uma pausa e eu prendi minha respiração — Sufocante. Ele disse que está sufocante, senhorita advogada.

— Eu só posso imaginar o que ele deve estar sentindo.

— Ele está insistindo em saber se é necessário mais dinheiro.

— Não. É mais do que o suficiente, na verdade — e era. Kim Taehyung me oferecia algo impagável, que eu jamais poderia retribuir, nem mesmo se fizesse com que ele ganhasse aquele processo — Eu vou. Aceito. Vamos fechar o contrato.

Dois minutos de silêncio.

— Ele está perguntando se a senhorita pode vir hoje.

Não, não tem a menor condição de eu ir hoje, pensei, olhando para o relógio: quase dava oito da manhã no Brasil e oito da noite na Coréia. Havia uma infinidade de compromissos que eu teria que desmarcar, justificativas a dar. Duas multas por quebra de contrato com outros clientes, eu precisaria sair e indicar alguns amigos advogados que pudessem acompanhá-los.

A Megera Cansada [Imagine V]Onde histórias criam vida. Descubra agora