30.10.2000/30.10.2021

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Eu ainda me lembrava da primeira vez em que o vi, mesmo sabendo que ele não. Não desta primeira vez, ao menos. Ele não sabia que eu já havia admirado todos os seus detalhes quando nos cruzamos, ao acaso, antes mesmo de sermos apresentados formalmente.

Eu tinha comigo todos os segundos do que começou como só mais um dia qualquer. Ninguém espera nada de uma segunda-feira à noite, não é? Ninguém espera nada além de um café aguado quando se senta pela milésima vez naquele mesmo balcão, no mesmo velho diner sujo de um bairro operário de New Jersey. Os sofás de couro marrom (tão desgastados que já estavam amarelados), as luminárias plásticas com moscas mortas do lado de dentro, e os canos prateados para os casacos serem pendurados - tudo isso fazia parte de um ambiente que nem eu queria estar, mas, com os altos índices de criminalidade da região, valia mais a pena estar sozinho e engordurado do lado de dentro do que mal acompanhado e assaltado do lado de fora.

Àquela hora, o público do restaurante não passava de uma intersecção de bêbados e trabalhadores fazendo a última refeição antes de assumirem o turno noturno adentro. Provavelmente, eu era a pessoa mais jovem ali, além de uma garçonete que só aguentava as piadas de mau gosto dos fregueses por precisar muito do dinheiro, talvez para se manter na universidade ou qualquer coisa do tipo. Trocamos olhares complacentes em alguns momentos, como se falássemos "tá tudo bem" num lamento silencioso. Não era a primeira vez que eu estava passando horas seguidas naquele balcão, e talvez fosse justamente por essa familiaridade que ela procurava algum consolo em mim.

Minha frequência quase assídua naquele estabelecimento tinha mais de um motivo, além do óbvio - que era a minha recusa de ficar dentro de casa. Por alguma razão, o Gerard de três meses atrás pensou que seria uma ideia genial que o trabalho final da disciplina de "Palavra, Imagem e Intervenção" fosse uma zine de crônicas e retratos. Inicialmente, de fato era uma boa ideia - tanto que a professora responsável demonstrou grande entusiasmo com o projeto. Ponto positivo para o Gerard do passado. O único problema disso é que eu não escrevia crônicas e nem desenhava retratos; e, por isso, eu nutria um grande ódio pelo meu eu do passado.

Depois de muito rodar (em vão) no próprio eixo do meu cérebro sobre como eu poderia superar o desafio que impus a mim mesmo - sem sucesso -, veio até mim a ideia de frequentar aquele diner cheio de operários, silenciosamente ouvir suas histórias e conversas, e transformá-las no meu material de trabalho. O que se iniciou como um tiro no escuro desesperado acabou se revelando um ponto inicial cheio de inspiração. Os homens ali, sentados entre seus pares, eram desinibidos e se sentiam num ambiente seguro para falar sobre qualquer coisa, inclusive causos tão inesperados que se mostravam dignos de crônicas.

O caderno simples que eu levava comigo tinha suas folhas sem pautas agora preenchidas pela minha letra garranchosa, incapaz de seguir em linhas retas ou espaços de parágrafos regulares; e a cada grupo de quatro ou cinco páginas, estava um retrato de alguém que, de maneira não exatamente voluntária, cedeu um "microtempo" de sua vida. Conforme eu percorria o miolo do caderno com a ponta dos meus dedos, sentia algo próximo de orgulho desabrochando em mim, ao ver os caminhos daquilo que se concretizaria em um bom trabalho.

Tudo ali foi escolhido propositalmente para parecer um desafio e de fato o estava sendo. Fosse na minha escrita ou nos meus desenhos ou fosse nos meus costumes e nas minhas expressões que quase automaticamente eram cartoons, tirinhas, e roteiros absurdos e surrealistas de histórias em quadrinhos. As páginas daquela brochura que um dia foi destinada para anotações sobre "Star Wars" eram tomadas por uma escrita corrida e formal, apesar de cotidiana, e a tinta preta da caneta combinava com o preto da caneta de nanquim que surpreendentemente fora usada em retratos realistas. As proporções condizentes com a realidade, os rosto cansados ou esbravejantes dos homens naquelas páginas, as olheiras profundas e as peles oleosas disfarçadas por seus uniformes... O projeto acadêmico era como um grande fio condutor que servia também como um pretexto para escrever não só sobre o trabalho braçal e sobre aqueles que o executam, já que eu também podia discorrer sobre tudo ao redor desse universo.

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