Festival das Solérias

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     O zunido ensurdecedor das cigarras-rainhas ressoava por todo o bosque naquela manhã ensolarada de verão. Era por volta das dez da manhã, e Sophie ainda não estava vestida para sair de casa, aliás, fazia poucos minutos que o incômodo barulho a tinha despertado.
Ainda com os olhos inchados, a jovem se esforça descomunalmente para se por sentada em sua cama, a fresta de luz que entra pela sua janela sugere um dia quente e convidativo lá fora, no entanto o travesseiro sedutor lhe atraía com uma força quase inquestionável. Era preguiçosa. Uma de suas maiores características era o completo mau humor matutino, repleto de lamentações por não ter dormido mais cedo na noite passada e murmurações por não poder se levantar mais tarde.

      Não havia ninguém para acordá-la. Sophie se tornara órfã muito cedo. Nunca conviveu com sua mãe. A única coisa que sabia sobre ela era que enlouqueceu após lhe trazer a vida, e que após o tempo de resguardo foi encaminhada para um sanatório, onde permanecera três anos, antes de se jogar do telhado do edifício. Nem mesmo o seu nome lhe era conhecido. Suas lembranças mais felizes foram ao lado de seu pai Slock, de quem herdou os negros olhos e o sorriso largo, era inquestionável para todos que o conheceram concordarem que a menina trazia em si o reflexo do pai. Somente a cor dos cabelos acusava um desacordo, a família Darach era marcada pela cor negra dos olhos e dos cabelos, ambos tão escuros que reluziam na claridade, e desapareciam nas sombras da noite. Sophie carregava o nome e o sangue Darach, porém os cabelos castanho-claros, com alguns tímidos fios dourados lhe negava a homogeneidade do clã. 

     Nada lhe incomodava mais de que o sono, nada a não ser a fome. E naquela manhã estava faminta. Havia passado uma grande parcela da noite anterior em treinamento, o que lhe custara diversos hematomas e escoriações. Além do sono, as dores musculares reforçavam o desejo de ficar deitada, imóvel; porém aquele era um dia atípico, era véspera do festival das solérias, e nenhum outro acontecimento era mais esperado por ela. Não que ela admirasse os enfeites, as danças e o concurso botânico, somente o que lhe atraía eram as tendas de alimentos, uma verdadeira festa de sabores, perfumes e cores, é quase inimaginável a variedade de pratos que se podem ser feitos com solérias.

      O Vilarejo de Toll era famoso pelas suas plantações, grandes estufas se estendiam por suas campinas e montes. A época de maior atividade era o verão, o carro-chefe do vilarejo era a produção de solérias, porém somente florescia com os ares quentes vindos desta estação. Os tollserianos precisavam agilizar a colheita e a estocagem durante aqueles meses, para garantir as suas sobrevivências durante o restante do ano, sobretudo no inverno, onde a neve cobre praticamente todo o vale de GoldenStorm, impedindo o acesso aos vilarejos vizinhos e consequentemente trazendo uma escassez de produtos e alimentos. Era necessário estocar os insumos e produzir seus derivados. Das solérias eram desenvolvidos uma gama de outros produtos: colônias, compotas de doces, remédios, temperos, tintas, sabão aromatizado e até mesmo tecido. Em Toll praticamente toda a população estava envolvida em algum destes processos, e o festival das solérias marcava o início das atividades econômicas que determinaria a prosperidade ou a escassez do ano seguinte.

      O festival inicia-se com a missa solene, celebrada na capela de Santa Mônica na praça do vilarejo, após a benção final, os moradores se fartam num grande banquete ao ar livre, os pais levam seus filhos para brincar, e as moças se reúnem nos coretos para demoradas conversas regadas a suco e bolo doce de soléria, e os rapazes se divertem com a típica dança dos Arumatés, tradição nativa do vale de GoldenStorm, que mescla passos rápidos e enérgicos com acrobacias, ao som de alaúdes e flautas. 

     Mas nenhuma destas atividades detinha a atenção de Sophie. Além de todas as festividades, o festival das solérias era escolhido para sediar outro importante rito em Toll, aliás, para Sophie o rito que saciaria o seu grande sonho, pelo qual havia se preparado a vida toda. Na ocasião do festival das solérias o vilarejo recebia os novos candidatos para o cargo de inquisidor, e durante os dias do festival os aspirantes a inquisidores eram submetidos a uma dura prova, onde revelavam as suas habilidades e virtudes necessárias para o ofício.

     Slock Darach foi um dos grandes inquisidores do Império e seu nome é reconhecido até hoje em todo o vale de GoldenStorm e em toda a região das pedreiras, até a costa de Diadema-púrpura que é fronteira com as terras dos bárbaros do oeste. Seu nome é relembrado por todos os inquisidores ativos, e suas histórias encorajavam todos os iniciantes desta santa ocupação.
Após banhar-se, Sophie dirige-se até a cozinha improvisada de sua cabana para se aplicar na árdua tarefa de encontrar os itens para o seu café da manhã. Aos cinco anos de idade, Sophie abraçou seu pai pela última vez, numa manhã gelada de inverno, antes do renomado inquisidor partir para mais uma missão, o que ambos não esperavam era que esta lhe seria a última. Após o luto, Sophie foi acolhida pelo seu tio Magno, que assumiu além da tutela da sobrinha a posse da herança deixada pelo seu pai, até que a menina se casasse como prescreve a Lei do Império.
A desventura de Sophie lhe reservava além da rispidez do tio, uma infância repleta de privações. Logo que a atenção dos tollsenrianos foi desviada da tragédia que rondou a família Darach, Magno tratou de recluir a garota em uma cabana velha nos fundos das suas posses. O lugar era inóspito, o odor de madeira podre e poeira preenchia todo o lugar. A companhia que a pequena Sophie desagradavelmente possuía eram dúzias de besouros, cupins e aranhas que já há muito faziam daquela cabana seu lar.

     Magno nunca se preocupou em visitar a sobrinha naquele assombroso cenário. Contratou uma mulher já de idade para cuidar de Sophie, trazendo-lhe comida, lavando suas roupas e ensinando a leitura e a escrita. A bondosa mulher afeiçoou-se a menina, e lhe fez de tudo o possível para lhe manter bem, além dos seus serviços Sophie recebeu o seu afeto. Era a figura materna que nunca havia conhecido.

     Rose Dragon era seu nome, tinha uma aparência muito sofrida, a pele já bem marcada pelo sol e pelas duras tarefas nos campos de solérias, onde trabalhava antes do novo emprego. Possuía um filho, dois anos mais velho que Sophie, o pequeno James, magro e pálido, o menino acompanhava sua mãe nas visitas diárias à velha cabana, onde passava a maior parte do tempo a reclamar e a chorar com medo das aranhas e dos outros insetos. Desde muito cedo Sophie demostrava muita coragem, e divertia-se ao ver a covardia do novo amigo, aliás, o primeiro e melhor amigo. Por vezes atirava-lhe nos cabelos bagunçados e oleosos um besouro já morto, que fazia o menino correr desesperadamente e gritar como quem sente cólicas renais, atraindo assim a repreensão de sua mãe, que se esforçava para injetar no menino lições de bravura.
Depois de encontrar meio pão de cevada já endurecido, Sophie toma uma caneca de leite morno, e apressadamente sai da cabana, sem antes levar consigo seus dois punhais de prata, a única herança que havia consigo de seu pai. Foi ao encontro de J.D., como gostava de chamar seu fiel amigo. Agora com dezessete anos, Sophie estava com a idade mínima para realizar a prova e se tornar uma inquisidora, e por isso necessitava gastar o maior tempo possível em treinamento. Claro que o jovem James a acompanhava, mesmo que contra a vontade, pois era ele quem recebia os golpes da garota, e lhe auxiliava em todos os duros treinamentos, mesmo que isso lhe custasse algumas contusões.

Inquisição - Crônicas do ImpérioOnde histórias criam vida. Descubra agora