Inconfidência

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     A tempestade se prolongou por quase toda a madrugada, nas ruas de Toll se notava as sequelas do fenômeno meteorológico. Árvores tombaram, casas foram destelhadas, várias tendas foram arrastadas pelas ventanias e algumas famílias ficaram desabrigadas. No campo das solérias, o estrago não foi menor, muitas estufas vieram a baixo, lonas, caixotes, carregamentos e leiras inteiras das flores foram condenados. Um grande prejuízo financeiro estava por sobrevir à cidade.

     No entanto, a cabana carcomida de Sophie pareceu sobreviver milagrosamente. A jovem inquisidora passara parte da noite em claro, escondendo-se da chuva que entrara pelas goteiras e pelos vãos abertos entre as tábuas mal colocadas. Uma vela acesa e o terço lhe fizeram companhia durante aquela madrugada, enquanto se aninhava embaixo da mesa da cozinha, enroladinha em uma manta felpuda e cheia de remendos.

     Pouco depois do raiar do sol, a porta de Sophie recebera fortes e insistentes batidas, num solavanco Sophie se levantou, e esquecendo-se de que a mesa que lhe servira de abrigo, acertou uma cabeçada nela, iniciando o novo dia com a aquisição de um galo.

     Nada irritava mais Sophie do que o sono, nada além da além da fome, e novamente naquela manhã estava sonolenta e faminta, e para potencializar ainda mais seu mau humor, alguém lhe acordara chamando-a insistentemente.

- Quem é? – balbuciou enquanto tentava calcular o prejuízo da batida na mesa.

- Sophie, é a Rose... Você vai se atrasar para a missa! – ouviu-se voz trêmula de Rose Dragon do lado de fora da choupana.

     Era domingo, o primeiro dia oficial do grande festival das solérias. Embora o festival já houvesse dado sinais de vida no dia anterior, era somente após a Missa Solene, que ele tomaria as devidas proporções. Missa esta que sempre era presidida por um padre convidado, atiçando o interesse dos paroquianos, sobretudo das velhas beatas que se comichavam de curiosidade.
Dona Rose bem conhecia a sua pupila, por esta razão, tratou de levar-lhe uma garrafa de leite fresco e algumas bolachas de nata, e enquanto a menina se banhava, ela acendeu o pequeno fogão à lenha e lhe preparou o café. Não demorou muito para que James se juntasse as duas, vestindo sua camisa de fim-de-semana e um colete que pertencera ao pai, o jovem já estava arrumado para a celebração aonde iria, oficialmente, ser apresentado ao vilarejo como inquisidor. O braço ainda estava enfaixado e com a tala posta por Dona Lola, mas não sentia mais dor alguma, acordara esta manhã prodigiosamente bem melhor.

     Depois de beijar o pai, e deixá-lo sob os cuidados de um primo seu, James, Sophie e Rose enveredaram rumo a Matriz de Santa Mônica. As surpresas que aquela manhã reservara, não eram somente os rastros de destruição da tempestade de outrora, havia também um rosto familiar naquela Missa que há muito tempo Sophie não via. Convidado pelo vigário do vilarejo, o recém-ordenado sacerdote pelo Seminário Maior do Império, Padre Leão, estava presidindo a celebração dominical.

     Antes da bênção final, o Lord Inquisidor regente, apresentou à assembleia os dois novos recrutas de sua Milícia. Um tanto envergonhados, os dois jovens foram acolhidos com uma calorosa salva de palmas, e o padre visitante lhes deu a bênção de envio. Enquanto os abençoava, Sophie sorriu e agradeceu com gentileza.

- Amém! Muito obrigada tio! – suspirou Sophie.

     Elizabeth Darach dera à luz a três meninos durante o seu matrimônio. O seu primogênito fora chamado de Magno, na intenção de ser o herdeiro do da chefia do clã; o segundo, nomeara Slock, desejando que o voracidade e a astúcia da caça lhe acompanhassem em seus empreendimentos; e o último filho, era prometido de ser o mais corajoso e imponente, por isso o batizou como Leão.

     Seguindo a tradição familiar, os três irmãos ingressaram na Ordem Inquisidora, na época, regida por Joshua Airgeard – o Justo. Slock sempre fora o mais talentoso na arte da esgrima e nas estratégias de combate, em pouco tempo sua fama se espalhou pela Milícia, causando certa inveja em muitos companheiros. Magno, no entanto, possuía uma inteligência fora do comum, era articulado e voluntarioso, sempre estava à frente das decisões a serem tomadas, era um político nato e muito sensato em questões diplomáticas que envolvia a Ordem Inquisidora, tão logo que seu talento fora notado, o Lord Justo lhe confiou à missão de ser seu conselheiro particular. Leão por sua vez, era um paradoxo, talvez o nome Cordeiro lhe coubesse melhor. O rapaz não gostava de holofotes, tampouco tinha audácia para se sobressair nos embates, era preguiçoso e fleumático, corria dos trabalhos árduos, preferindo devorar livros e recitar poemas.

Inquisição - Crônicas do ImpérioOnde histórias criam vida. Descubra agora