Capítulo 4

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Meses se passaram, e eu ainda ficava impressionada com minha intuição, sempre me avisando tão fielmente quando ela se aproximava. Dentro de mim realmente havia um sensor. Podia estar de costas, ou entre as prateleiras, não importava: eu sabia quando Regina se aproximava e, ao olhar, seus olhos imediatamente encontravam os meus. Era surreal, e isso só reforçava minhas esperanças. Uma vozinha na minha mente continuava me dizendo que, se as coisas aconteciam desse jeito tão mágico, então era pra acontecer, certo? 

Eu não tinha certeza se acreditava em destino, ou alma gêmea, mas só podia ser coisas assim. Não tinha outra explicação.

Um dia, Regina me disse que sua filha mais velha era quase da minha idade, dois ou três anos mais nova, e poderíamos nos dar bem. Ela se chamava Lily e estudava duas ruas para cima da escola onde eu estudava, então, acabamos nos conhecendo. Era uma menina incrível e doce, como a mãe. Começamos a nos aproximar e com a amizade crescendo começamos a marcar de irmos a casa uma da outra em alguns finais de semana, o que era ótimo pra mim, pois assim eu veria Regina com mais frequência. 

Lily me contava histórias da família, e eu amava saber mais sobre sua mãe. As histórias que mais me interessavam eram sobre uma discussão ou outra entre seus pais. Eu não desejava o mal para aquela família, mas tinha muito ciúme quando via Regina com Robin, seu marido. Eu e Lily passávamos horas conversando. 

Com a convivência, acabei conhecendo melhor Robin e Roland, o marido e o outro filho de Regina. Eles até foram na minha festa de aniversário, e fiquei imensamente feliz pela presença de toda a família. Tão feliz que nem ao menos tirei uma foto, e nunca me perdoei por isso.

Em alguns dos encontros, Lily começou a me perguntar por que eu não namorava, se eu gostava de alguém, entre outras questões normais entre amigas adolescentes. Eu disse que tinha, sim, um amor platônico que jamais seria correspondido. Ela quis de qualquer maneira descobrir quem era, mas eu jamais poderia dar qualquer pista que lhe dissesse que era sua mãe, então apenas falei que era uma mulher mais velha. Se eu soubesse no que isso resultaria, diria simplesmente que não tinha ninguém e pronto.

Quando Lily descobriu que eu era lésbica, passou a ter muita curiosidade. Fazia muitas perguntas, dizia que achava legal, que gostaria de ter uma experiência, mas que a mãe jamais aceitaria.

Ótimo, além de tudo, meu amor platônico tinha indícios de ser homofóbica.

Algumas semanas depois, Lily disse que tinha muita vontade de ficar com uma menina pra saber como era, e eu desconversei. Aquilo seria um absurdo. Até que em outra oportunidade, ela foi bem direta:

— Queria muito saber como é beijar uma menina, mas eu só teria coragem se fosse você.

Fiquei sem saber o que fazer.  Eu a encontrava quase todos os finais de semana, via Regina nos fins de tarde. Eu não poderia fazer aquilo, não poderia ficar com a filha da pessoa que fazia meu coração bater tão forte. Sendo assim, evitei encontrá-la por umas duas semanas, mas eu não tinha mais desculpas para dar, e então, ela foi no sábado para a minha casa. Num certo momento, entre conversas, Lily voltou a esse assunto, repetiu que só confiaria em mim e se aproximou. 

Juro que eu não as achava parecidas. E apesar dos olhos negros como o da mãe, ela não tinha aquele olhar que me tirava do eixo, nem os cabelos cor de café, mas, quando Lily se aproximou, eu vi ali algum traço muito forte de sua mãe, que eu não havia visto até então. Por uma fração de segundos, o impulso me fez acreditar que aquilo era o mais próximo que eu chegaria da mulher que amava. Permiti que ela encostasse nossos lábios, fechei os olhos e a beijei.

O beijo durou alguns minutos, como se nossas bocas estivessem gostando da exploração e, não vou dizer que não foi bom ter ficado com ela, que também pareceu ter gostado. Trocamos mais alguns beijos naquela tarde, até Regina chegar para buscá-la. Aquele olhar me desestabilizou de novo, porque, daquela vez, eu sabia que estaria para sempre tentando esconder algo dela. Era como se eu tivesse cometido um crime imperdoável e, ao ver Regina ali, em frente à minha casa, essa angústia ganhava ainda mais força no meu peito.

Elas se despediram de mim e partiram, e então a realidade se abateu sobre mim, sem dó, atingindo em cheio o meu estômago. Encostei no portão que havia acabado de fechar, e me permiti chorar. Chorei nem sei por quanto tempo. Queria que aquelas lágrimas me fizessem voltar no tempo. Eu estava me sentindo a pior pessoa do mundo, a culpa estava me consumindo. Eu definitivamente era um monstro. Regina me confiou a sua família, me apresentou e me fez ser parte deles. Confiou a mim sua filha, em minha casa, e eu não fui responsável, me deixei levar por um impulso, e beijei a filha da pessoa que eu tanto amava. Ela jamais me perdoaria. 

E do outro lado ainda havia Lily, que não sabia de nada e estava sendo usada, de certa forma. O que ela pensaria se soubesse que a mulher que amo é a sua mãe? O que diria se soubesse que eu a beijei porque vi sua mãe através de seus olhos negros? Será que ela teria nojo de mim? Será que me perdoaria? Contaria para sua mãe, se soubesse a verdade? E o que Regina diria, afinal?

Nada disso importava mais, é claro; eu tinha a certeza de que havia acabado de estragar tudo, e não estava pronta para as consequências. Porém, na semana seguinte, era como se nada tivesse acontecido. Regina me tratou normalmente, e Lily também. Achei que aquele assunto estava encerrado — não que minha culpa deixasse de existir, mas seria mais fácil se não tivesse que arcar com as consequências. Talvez, se eu também agisse como se nada tivesse acontecido, poderíamos deixar os erros no passado e seguir em frente.

Bem, eu estava enganada. No final de semana seguinte, quando Lily chegou à minha casa, ao me despedir da Regina e fechar o portão, ela se aproximou e selou nossos lábios. Como namoradas. Como eu ia parar aquilo? Qual era a melhor forma de reagir? 

Minha imaturidade não permitiu, e mais uma vez o impulso tomou conta. “Se está na chuva, é pra se molhar”, pensei. Nos beijamos muitas vezes depois disso, mas ainda éramos amigas além de qualquer coisa. O beijo fluía, e era gostoso, mas não havia sentimento, em nenhuma das partes. Eu não tinha expectativa nenhuma com ela, nem ela comigo, e era por isso que fluía tão bem. Era o pouco da Regina que eu poderia ter comigo.

Quando eu colocava a cabeça no travesseiro todas as noites, a culpa ainda estava lá. Se Regina descobrisse, jamais me perdoaria, e eu tinha tanta certeza disso que chegava a doer. Se por algum momento tive uma ínfima chance de ter algo com ela, eu mesma já tinha me encarregado de estragar tudo. 

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