Capítulo Onze

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Ian dormiu em um hotel. Não que dormir fosse uma boa descrição do que aconteceu. Ele passou a maior parte da madrugada olhando fixamente para o teto da sua suíte, tentando esfriar o ânimo com uma garrafa fechada do melhor champanhe Clarendon sobre o olho contundido. No meio da manhã, ele foi fazer exatamente o que a causadora da sua fúria lhe havia dito que precisava fazer com mais frequência. Foi desabafar da única maneira aceitável para um cavalheiro. Foi para o Gentleman Jackson's. Nu até a cintura, ficou em uma das salas de pugilismo do ginásio com um saco de treino pendurado à sua frente. Pesou em Montrose, na sua própria cabeça latejante e golpeou com o punho sem luvas o centro do saco, imaginando que era o belo rosto de Montrose. Havia tanta satisfação naquele ato que o repetiu mais uma vez. E mais uma vez. E mais outra.
Então pensou em have. Como podia um homem achar que um beijo equivalia à aceitação de uma proposta de casamento? Soco. Idiota excêntrico! E o que ele estava fazendo sozinho com Lucia, para começo de conversa? Sendo beijado por ela? Soco. Soco. Soco.
E ele mesmo? Querendo o que não poderia ter. Querendo aquele boca saborosa colada na sua, querendo aquele corpo incrível e voluptuoso debaixo do seu, desejando-a tanto que não conseguia dormir nem trabalhar. Não conseguia nem pensar direito. Por Deus, ele ameaçava se tornar um bobo alegre tão estúpido quanto Walford! Que pensamento repugnante! Soco.
Que idiota! Seria o maior tolo vivo se começasse a gaguejar por causa de uma moça bonita, como se fosse um menino de calças curtas. Duas vezes idiota por pensar com a virilha e não com a cabeça. Soco. Soco. Soco
Precisava de uma cura feminina, concluiu. Não tinha uma mulher há tanto tempo que nem se lembrava. Oito meses, dez. Algo assim. Soco.
Não era de admirar que estivesse ficando louco. Naquela noite, decidiu, invadiria um harém, encontraria alguma companhia feminina que deixasse o corpo dele na temperatura certa, equilibrado, de forma que o seu cérebro se voltasse para onde era o seu lugar. A cabeça. Soco. Soco. Soco.
Durante uma hora, Ian esmurrou o saco de treino com toda a força da sua frustração, perguntando-se quantos outros Hayes, Montroses e Walfords estariam espalhados por aí, esperando para tornar a sua vida um inferno.
Respirando com dificuldade, ele parou, enxugando o suor da testa e olhando zangado para o saco à sua frente. Por que os italianos sempre causavam tanto transtorno? Especialmente uma italiana em particular, uma jovem de corpo de deusa e sorriso caloroso como o sol. Ela tinha a alma de uma gata. Queria ser mimada e mal acostumada, afagada e adorada. Até enjoar disso tudo.
Ian se preparou para mais uma rodada e então hesitou, sem nenhum motivo. Com uma praga, virou-se é foi embora, supondo que já tinha desabafado o suficiente por um dia.
Havia ocasiões em que ser uma atriz consumada se revelava muito útil. A festa de Lady Hewitt, naquela noite, provou ser uma dessas situações.
- Miss Valenti, soube que a senhorita está noiva de Lorde Haye. Deixe-me dar-lhe os parabéns.
Lucia grudou um sorriso no rosto para Lady Westburn, espantada com quantos parabéns uma mulher podia receber em apenas algumas horas.
- Grazie, contessa, mas nada está decidido até que o meu pai dê a sua permissão - respondeu ela, pensando que, se tivesse que dizer aquelas palavras mais uma vez, iria para casa.
- Naturalmente, naturalmente, mas sem dúvida o príncipe Cesare não pode ter objeções a Lorde Haye. Como a senhorita, Haye é católico.
Lucia ignorou o tom depreciativo de Lady Westburn.
Ela meramente deu de ombros.
- Meu pai às vezes é difícil de entender. Não há como prever o que ele vai dizer. Veremos.
Depois de alguns minutos de conversação polida, nos quais a condessa tentou obter mais informações e Lucia delicadamente saiu pela tangente, Lady Westburn seguiu adiante.
Lucia se inclinou para mais perto de Grace.
- Gostaria de poder simplesmente dizer a todos que não há nenhum noivado - murmurou ela, exasperada.
- Você não pode desmentir o noivado para os outros antes de ter esclarecido o mal-entendido como o próprio Haye - respondeu Grace talvez pela décima vez desde que elas tinham chegado à festa.
- Já sei, já sei.
Lucia suspirou, desejando que Haye tivesse podido ir visitá-la naquela tarde. Querendo esclarecer a confusão o mais rapidamente possível, ela lhe havia enviado uma nota logo de manhã, pedindo que ele lhe fizesse uma visita. Haye, porém, respondeu que lamentava, mas naquele dia estava totalmente ocupado com questões que não poderia deixar de lado. Dados os sentimentos do conde por ela, essa resposta era muito estranha, mas Haye tinha lhe garantido que lhe daria uma visita no dia seguinte, e ela fora obrigada a fingir por mais vinte e quatro horas que ela é o conde tinham intenção de se casar.
- Miss Valenti, parabéns pelo seu noivado com Lorde Haye.
Lucia sorriu para Lady Kattering e lhe fez aquele pequeno discurso mais uma vez.
A marquesa retribuiu o sorriso.
- Quando eu apresentei a senhorita para Haye no meu pequeno concerto amador, tive a impressão de que os dois combinavam um com o outro. Parece que eu estava certa.
Lucia alargou o sorriso e riu um pouco, mas logo que a marquesa se afastou, ela deixou de lado a torta gelada de morango e lançou um olhar suplicante para Grace.
- Estou com uma terrível dor de cabeça. Há alguma forma de eu poder ir para a casa?
- Naturalmente, iremos para casa, se você desejar. - Grace pôs o seu doce em uma mesa e olhou ao redor. - Vejamos se podemos encontrar Dylan para ele mandar buscar a carruagem.
As duas mulheres abriram caminho pela multidão que lotava o salão de Lady Hewitt e depois entraram na sala de música, mas não havia sinal de Dylan nos dois lugares. Elas encontraram, porém, o duque e a duquesa de Tremore ao pé da escada.
- Vocês viram Dylan? - Grace lhes perguntou. - Lucia está com dor de cabeça e quer ir para casa.
- Nós o vimos há um momento - respondeu Tremore. - Ele disse que ia sair para respirar um pouco de sr ouro. - O duque olhou para Lucia. - Soube que a senhorita e Lorde Haye vão se casar, Miss Valenti. É verdade?
Lucia gemeu.
Daphne cumulou as costelas do marido e ele olhou para ela, surpreso.
- O quê? - perguntou ele, sem entender. - A cidade toda está sabendo. White estava comentando isso, todos excitado, ainda há pouco. Não é verdade?
- Bem... - Daphne hesitou e olhou para Lucia. - Posso contar para ele?
Lucia, que já havia explicado toda a confusão para a duquesa em sussurros uma hora antes, disse a Tremore:
- Haye pensa que nós estamos noivos, mas não estamos.
O duque levantou uma sobrancelha. - Entendo - disse ele, em um tom de quem sem dúvida não entendia nada.
- É complicado - disse Lucia, olhando-o com expressão infeliz. - Vou deixar que a duquesa explique, se o senhor não se importar. Estou com uma incrível dor de cabeça, e só quero ir para a casa.
- É por isso que estamos tentando encontrar Dylan - disse Grace. - Para mandar buscar a carruagem.
- Nós também estamos esperando a nossa carruagem - disse Daphne. - Já estamos esperando há algum tempo, de forma que ela deve chegar a qualquer momento. Esta festa está uma aglomeração tão grande que, se vocês esperarem Dylan mandar buscar a carruagem dele nos estábulos, vai levar mais meia hora pelo menos. Nós teríamos prazer em levá-la de volta a Portman Square, Lucia. Assim, Grace e Dylan podem ir para casa quando quiserem e você pode descansar a cabeça.
Lucia olhou para a duquesa com gratidão e, pouco tempo depois, estava de volta a Portman Square. A cozinheira de Dylan, Mrs. March, insistiu em lhe dar uma xícara de um chá de ervas de gosto horrível, que funcionava como mágica. Quando Lucia entrou na cama, a dor de cabeça já tinha desaparecido.
Ela caiu no sono, mas não foi um sono sereno. Senhor que seu pai insistia que ela se casasse com Haye. Ian também estava lá, concordando com Cesare, dizendo que o fato de o pobre-coitado não saber beijar não era motivo para que Lucia o recusasse. Depois ela estava em uma igreja com Haye, faziam os votos e, apesar de ela tentar o tempo todo gritar "Não, não, é tudo um engano", nenhuma palavra saia de sua boca. Depois ela e Haye estavam na carruagem, marido e mulher, e o conde a beijava com aquela boca de peixe. Era tão horrível que Lucia acordou.
Ela se sentou na cama, assustada, e respirou aliviada ao perceber que era só um sonho. Deitou-se novamente, mas o sonho ainda estava tão vivo em sua mente que ela não conseguia voltar a dormir.
Lucia sabia que aquele sonho podia se tornar realidade. Ela poderia ser forçada a se casar com Haye ou, se não com ele, com algum outro homem cujos fossem igualmente insossos. Só lhe restavam três semanas para encontrar um marido. E se agosto chegasse e ela não o tivesse encontrado?
Havia sido apresentada a muitos homens desde que chegara à Inglaterra, mas apenas um a deixara interessada. Apenas um a cativara. Apenas um tinha a paixão que ela tanto desejava.
Lucia pensou na noite anterior e em Ian de pé no foyer, explodindo de raiva. Ela se perguntara antes o que aconteceria se alguma vez ele perdesse o controle, deixando as paixões soltas. Agora ela sabia. Ian Moore era um homem e tanto.
Não que isso tivesse importância. Ela não podia se casar com ele, mesmo que quisesse. Lucia se virou para o lado e abraçou o travesseiro. Três semanas pareciam um tempo desastrosamente insuficiente para encontrar um marido. O que ela ia fazer?
Lembrou-se daquele sonho horrível, e a preocupação começou a corrlê-la por dentro. Tentou voltar a dormir, mas era inútil. Finalmente, depois de se virar na cama por mais alguns minutos, ela empurrou a colcha e se levantou. Pensando que talvez um livro a distraisse de suas aflições, pôs um roupão sobre a camisola e desceu para o andar de baixo.
Ao se aproximar para abrir a porta da biblioteca, ela percebeu que Ian devia estar em casa, pois ouviu a voz dele e a de outro homem. O primeiro pensamento que lhe ocorreu foi que Dylan e Grace também tinham voltado para casa cedo, mas ao se aproximar da biblioteca, percebeu que a pessoa que estava com Ian não era o irmão dele.
- Isso é insuportável! - dizia, irritada, uma voz masculina. - Insuportável!
Haye.
Lucia parou a certa distância da porta, com as sobrancelhas franzidas de surpresa. O que Haye fazia ali?
Ian disse o nome dela é mais alguma coisa que ela não entendeu bem. Lucia deu um passo para mais perto da porta.
- Sir Ian, ela estava tendo um caso de amor! E com um ferreiro!
Lucia segurou a respiração. Eles estavam falando sobre Armand. Ela ouviu Ian falar novamente e esforçou-se para ouvir.
- Um rumor da maior gravidade, de fato - dizia ele -. Mas sem base nos fatos. A moça é...
- Sem base nos fatos? - A voz de Haye tinha um desprezo frio. - Madame Tornay, que era diretora dessa academia para jovens damas, é uma mulher escrupulosamente honesta. Se não fosse, eu nunca teria colocado a minha irmã sob os cuidados dela. Ela não contaria uma história dessas para o meu tio a não ser que fosse absolutamente verdade.
- Então o senhor condena Miss Valenti baseado em histórias contadas por outras pessoas.
- Madame Tornay foi muito clara no relato do episódio. Miss Valenti manteve essa ligação com um ferreiro de nome Armand Bouget durante meses. O caso era do conhecimento das amigas dela na escola, e Madame Tornay farejou alguma coisa. Miss Valenti... Miss Pelissaro, como era o nome dela então, pois isso aconteceu antes de o pai a reconhecer e quando ela tinha o sobrenome da mãe, para acrescentar mais um detalhe pouco convencional! Eu nem mesmo sabia que o sobrenome de Francesca era Pelissaro até ser informado hoje pelo meu tio. De qualquer forma, voltando ao assunto em questão, Miss Valenti fugia do quarto na escuridão da noite para se encontrar clandestinamente com esse tal Bouget.
- Talvez eles meramente conversassem.
- Sir Ian, faça-me o favor! Somos homens do mundo, o senhor e eu. Os dois sabemos que uma conduta dessas não pode ser inocente.
Ian começou a falar de novo, mas Haye o interrompeu.
- Quando o senhor é eu discutimos pela primeira vez a questão da situação de Miss Valenti, hesitei até mesmo em consentir em ser apresentado a ela devido à profissão da mãe dela. Mas, contrariando todo o meu bom senso, concordei em conhecê-la.
Lucia quase explodiu de indignação ao ouvir aquilo.
- Quando eu a conheci - continuou Haye -, ela capturou o meu coração imediatamente, e eu decidi deixar passar a questão da mãe e da ilegitimidade dela. Dispus-me a perdoar as desditas de nascimento dela por serem questões sobre as quais ela não teve controle.
Lucia cerrou os punhos. Ela deu um passou em direção à porta, pensando em interromper e dizer a Haye o que ele podia fazer com o seu perdão. Também lhe diria o que ele poderia fazer com a sua habilidade de beijar, já que tinha essa chance. Mas então Haye voltou a falar, e a curiosidade levou a melhor sobre a afronta.
- Mas Armand Bouget é uma questão diferente. Eu pensava que o gesto ousado de Miss Valenti em me beijar indicava o afeto que ela tinha por mim. Mas agora descubro que a afeição dela também foi dada a pelo menos um outro homem, e provavelmente a virtude dela também. Parece que ela saiu à mãe mais do que eu gostaria de acreditar.
- Haye - começou Ian, mas o conde o interrompeu.
- Meu tio e eu, cavalheiros discretos que somos, manteremos esse conhecimento entre nós, mas isso me impele a retirar o pedido de noivado. Miss Valenti é uma mercadoria danificada. Não posso me casar com uma mercadoria danificada.
Lucia apertou os braços ao redor do corpo e fechou os olhos. Fosse qual fosse a resposta dada por Ian, ela não a ouviu. As palavras ditas por ele anteriormente é que lhe ecoavam na mente.
"Será suficientemente difícil para mim encontrar um marido adequado no curto tempo que nos é dado... A senhorita é responsável por uma grande parte dessa situação, com a sua conduta passada... "
Até aquele momento, ela não tinha levado as palavras dele nem um pouco a sério, mas agora começava a entender a fragilidade da reputação de uma mulher e como o seu próprio passado poderia voltar para persegui-la. A indignação de Lucia se dissolveu, transformando-se em desânimo.
Todo aquele tempo ela tinha se concentrado em encontrar um marido que a amasse. Tinha se concentrado tanto nessa emoção que nunca lhe ocorrera que o seu passado poderia impedi-la de encontrar um homem que a respeitasse. Não era justo, mas isso podia muito bem acontecer. Ela não se incomodava com o que Haye pensava, mas o que outro homem pensaria dela?
O que Ian pensava?
Essa pergunta aumentou o seu desânimo e se tornou um verdadeiro pavor. Será que Ian achava que ela era mercadoria danificada? Com quase toda a certeza. Com os padrões severos dele sobre decoro, como ele poderia pensar de outra maneira?
A dor apertou-lhe o peito ao imaginar que ele poderia pensar mal dela - e Lucia percebeu afinal que se incomodava com o que ele pensava. A boa opinião dele era difícil de conquistar, mas era o que ela queria. Pensar que ele não tinha uma boa opinião a seu respeito - que Ian a considerava com o mesmo menosprezo que Haye - doía mais do que ela tinha acreditado ser possível.
As lembranças do seu passado lhe cruzaram a mente. Lamentava o passado? Pensou em Armand, na noite de carnaval em Bolgheri e em todas as coisas rebeldes e desafiadoras que havia feito na vida. As freiras sempre tinham dito que ela era pecadora e perversa, e talvez tivessem razão, pois ela não se arrependia verdadeiramente de nada do que tinha feito. Ela tinha amado Armand. Tinha dado a Elena uma noite de liberdade que a irmã nunca esqueceria. Tinha feito algumas coisas proibidas algumas vezes - fumar, beber, jogar, fugir -, e tinha aproveitado tudo. Para dizer a verdade, o maior prazer fora esfregar tudo isso na cara do pai. Ian não compreenderia isso, supunha ela. Ele sem dúvida não aprovaria nada disso.
Com toda a honestidade, Lucia não se arrependia do seu passado, mas quando pensava em Ian, em como nunca teria o respeito ou a boa opinião dele, a falta de arrependimento não servia de conforto.

Muito Mais Que Uma PrincesaOnde histórias criam vida. Descubra agora