1 • O vício de Deus

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"Talvez a noite seja um dos vícios de Deus".

Tais palavras reverberavam por sua cabeça a todo momento em que se perdia no desprezo em relação àquela vasta escuridão que se estendia gradativamente sob sua cabeça quando nos relógios, os ponteiros rastejavam até às seis em ponto.

Considerava que o dia seria o motivo pelo qual Deus gostaria de mudar. Por ele, buscava a cura que o livrasse das estrelas, da lua e de todo aquele breu nauseante.

Torcia para que Deus conseguisse.

E sabendo que já não seria capaz de enxergar o que estivesse além da precária janela ao seu lado, encarava sua imagem no espelho sujo e velho do banheiro. Sentia que estar de frente para si mesmo era tão embaraçoso quanto ser uma criança e fazer xixi na calça estando na frente da pessoa de quem gosta.

Estava ciente de que seus pensamentos não tinham contrastes, julgando a hora e o vômito atrás de seus sapatos. As várias doses já deixavam tudo muito turvo aos seus olhos e o gosto na boca era ácido e quente.

Sempre que bebia acabava parando em frente a um espelho, não sabia como, mas lá estava. Sendo intimidado pela exuberante violência no olhar do cervo cravado com tinta e algumas agulhas no próprio pescoço.

Os detalhes mais sutis eram o que mais o incomodavam naquela tatuagem, os traços finos que engrossavam de forma tão elegante e clara, tornavam a teoria, criada pelos amigos - de que aquele maldito desenho esteve ali desde o momento em que era formado na barriga de sua mãe -, não tão absurda assim.

Havia também, a haste do que já foi uma rosa, seus espinhos envolvem todo o seu braço direito e vão até o ombro. Se lembrava perfeitamente da dor de desenhá-la, dos traços e da horrível cicatrização. Odiava aquela tatuagem mais do que odiava a si mesmo. Embora, representasse o motivo pelo qual se tornou o homem que é hoje.

Aquelas tatuagens o lembravam quem ele era e o contavam a história de quem ele nunca seria. Ao olhá-las, sentia-se abandonado por si mesmo e, em um ato de pura autopiedade, se perguntava: "Como pode me deixar assim?"

Por isso era tão embaraçoso, pois sabia que estava decepcionando alguém. E assim como ele torcia pela mudança de Deus, quem ele nunca seria, torcia por ele também.

Desviou o olhar para o chão, havia vomitado nos quatro cantos daquele banheiro minúsculo e, antes mesmo que encontrasse seu maço de cigarros em um dos bolsos da calça ou da jaqueta, correu para a privada e vomitou mais uma vez.

Havia muito sentimento na forma como se segurava nas paredes da cabine, um sentimento visceral que o corroía, que o devorava de dentro para fora e parecia nunca estar satisfeito. Aquele que o deixava doente e refém de uma grande garrafa de bebida que nem mesmo sabia pronunciar o nome.

E por aquela mesma garrafa, lavou o rosto e enxaguou a boca para reunir forças e se juntar à bancada do bar. Se sentando em seu banco preferido e sendo compreendido pelo dono com apenas um olhar.

Jungkook era o único naquele lado da cidade que apreciava verdadeiramente a cachaça brasileira.

— Saideira? — o homem de avental perguntou enquanto sorria pequeno e o servia. — Preciso dessa garrafa pelo menos pela metade, não sei quando vai chegar mais e preciso garantir que meu novo cliente favorito volte amanhã.

Jungkook arqueou uma das sobrancelhas ao pegar o copo e levá-lo à boca de uma vez. Não conseguia se concentrar em uma única palavra das muitas que saiam da boca daquele homem, mas sempre concordava com tudo.

Tinha bagunça demais dentro de sua cabeça, estava apenas começando a frequentar aquele lugar e por esses motivos não estava disposto a pedir silêncio nem a explicar as regras para ninguém, pelo menos, não por enquanto.

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