Ahmes se separou de Acácia um pouco depois da igreja, num canto do caminho até sua casa onde não seriam vistos e onde também não haviam moradores. Dividiu com a moça algumas provisões que trouxera da Montanha, pães rústicos e cerveja, além de alguns grãos. Os passos pesados dispersaram a poeira da estrada e sujaram seus calçados puídos, a brisa fria entrava pela lapela do casaco e lhe arrepiava o pescoço, o peito subia e descia cismáticamente.
Sua casa estava onde sempre esteve, no terreno mais afastado do restante das propriedades da vila, o mato crescia ao redor da antiga construção de madeira, um fio tímido de fumaça subia e se misturava às nuvens baixas de tempestade. Ele ajeitou as bolsas nos ombros, então entrou na casa sem bater, ouvindo o barulho de panelas e corte que vinham da cozinha. Caminhou pela pequena sala com um baú, uma pequena estante com animais feitos de madeira e potes para as festas de fim de ano, e passou pelo portal para a cozinha.
– Estou em casa! – Avisou, mas ela nem sequer se virou.
– O que está fazendo aqui?
– Vim trazer provisões, creio que irão durar até o final da semana, então trarei outra vez.
A mulher se virou, os cabelos grisalhos formavam uma nuvem ao redor da cabeça que caia pesada até os ombros, em seu rosto as marcas de alguém que claramente não dormira naquela noite.
– Falam de você na cidade.
– Acácia me contou – murmurou com asco, jogando as sacolas sobre a mesa e se sentando.
– Esteve com ela?
– Sim, ela estava me informando sobre a noite do solstício.
– Ela é uma boa moça, deveria usar o dinheiro do trabalho para conseguir uma boa casa e pedí-la em casamento.
Ahmes suspirou.
– Se me casar com Acácia não será neste Vale.
A mulher fez uma careta de desaprovação e voltou para o fogão.
– A Besta esteve na propriedade McBride?
– Sim senhora, a ouvi por parte da noite.
– Deus parece planejar punição para o maldito Conde.
– Não chame de maldito o meu senhor, ele nos deu alimento.
– O Diabo também ofereceu a Jesus alimento quando ele jejuou no deserto e não deixou de ser o Diabo.
Ahmes se empertigou e soltou o ar com insatisfação.
– O Conde não parecer ser ruim.
A mulher se virou com pressa.
– Não desonre nossa família falando desta forma, já te acusam de ser amante do demônio.
– Pois não sou! Amo Acácia desde a juventude e a ela pertence meu coração, jamais ocorreu-me sentimentos deste tipo por qualquer pessoa, quanto mais por um homem.
Mary Frye o encarou com breve desprezo e depois enrolou alguns panos em suas mãos para colocar a panela de sopa na mesa, suspirou amargamente e pegou as sacolas com provisões dispostas sobre a mesa.
– Oran! Seu irmão está aqui! – Mary gritou.
Passos delicados deslizaram pelo assoalho e o garoto com cabelos de mel apareceu na porta, seus lábios se abriram num sorriso e seus braços logo agarraram o pescoço de Ahmes num abraço apertado. Ahmes segurou o irmão com carinho, acariciando sua cabeça, o cabelo macio em contraste com a mão calejada de guerra.
Oran se afastou e circulou o peito com a mão em punho*.
– Também senti saudade.
O garoto franziu o cenho e gesticulou com pressa, juntando o polegar e o dedo médio num gesto frenético ao final.
– Posso imaginar, também fiquei com medo.
Mary estalou a língua.
– Certo Oran, agora vá lavar as mãos.
Oran revirou os olhos e fez uma careta, mas correu até o reservado depois de dar um beijo na bochecha do irmão.
– Acho que não deveria voltar, pelo menos não até o fim do inverno, seu irmão está indo bem com os estudos e superando sua mudez.
– Eu não deveria?
– Acho que não é bom pra ele que esteja aqui, ninguém sai imaculado de terras malditas.
***
Depois de ouvir os insultos da mãe, Ahmes passou as duas outras horas tentando não demonstrar sua amargura a seu irmão. Oran o encarava com admiração, ficou satisfeito por vê-lo bem depois de tudo, não o via tão empolgado desde antes da doença que o tirou a voz a dois anos. Mas chegara a hora do regresso, e teve de caminhar sob os olhares maldosos até o final da estrada.
Depois de um bom tempo caminhando pôde ver a propriedade McBride surgindo como uma sombra no alto do cume, as gavinhas ressecadas pelo frio atribuíam à floresta o aspecto de assombroso abandono. Ele logo viu cabelos negros contra a brisa, as costas fortes e cobertas por um pesado casaco enquanto os músculos saltavam no esforço para cortar a lenha.
– Estou de volta meu senhor – avisou ainda a distância.
O Conde não se virou de imediato, cortou mais uma lasca de lenha e hesitou por alguns instantes como se achasse que tudo não passava de um delírio. Logo em seguida girou sobre os próprios tornozelos, as bochechas coradas pelo frio saltando sobre os olhos escuros quando sorriu mecanicamente, as sobrancelhas franzidas num esforço solene para processar o que estava acontecendo. Ahmes Frye caminhou até ele, encarando o chão sem forças o suficiente para sustentar aquele olhar, então parou quando as botas polidas entraram em seu campo de visão.
– Achei que jamais o veria novamente – deu uma risada, parecia tentar soar despretensioso mas o nervosismo era evidente.
– Bom, acho que eu gostei daqui.
McBride deu de ombros e não disse mais nada, voltou a cortar a lenha e um desespero silencioso corrompeu a tranquilidade da alma de Ahmes. O rapaz seguiu o seu caminho e foi até o anexo para deixar sua bolsa, o cheiro de carne cozida e ervas tomavam todo o lugar, seu estômago roncou depois de um par de horas sem comer. Se curvou sobre o caldeirão de caldo para sentir o cheiro da galinha imergida na líquido amarelo e grosso, a boca se enchendo de saliva, o puxão na garganta.
A porta se abriu.
– Sr Frye? – virou-se abruptamente, as bochechas coradas de constrangimento. – Não vou sair essa noite, queria saber se me acompanharia em um jantar.
– Seria um prazer.
A voz falhou, uma brisa suave chegou até ele pela porta e o arrepiou todo o corpo...
***
N/A: Oran é uma pessoa com deficiência, os gestos retratados por ele são descrições reais baseadas na língua brasileira de sinais [LIBRAS].
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Besta ⨳ A Sombra de Avennar [CONCLUÍDO]
Fantasía[SOBRENATURAL] [FANTASIA SOMBRIA] [+16] O reino de Avennar é um lugar amaldiçoado, uma sombra paira sobre as vidas da população e no vale mais antigo, uma besta se esconde em meio a densa floresta. Desde muito antes, a Montanha pertence à família Mc...