Sable esfregou suavemente o lenço umidecido na bochecha de Ahmes Frye, o pano macio manchou-se num tom de marrom profundo, que abriu-se num leque avermelhado. O rapaz dormia tranquilamente, o peito desnudo subindo e descendo devagar, os cílios longos nem se mexiam. Ele tinha uma bandagem no pescoço, pequenas manchas de sangue seco pintavam o branco, também havia um mínimo corte aberto no supercílio.
O conde deslizou os dedos pela pele do homem adormecido, arrepiou-se inteiramente com o breve contato, os olhos turvaram-se pela segunda vez na manhã. Craig dormia no andar superior, ou talvez estivesse apenas preservando a privacidade do amigo. Uma corrente de ar bateu em suas costas, o brilho do sol derretia o gelo da ponta dos telhados, observar a vulnerabilidade de seu servo era um canto deletério.
Largou o pano na bacia quando a água esfriou, subindo a manta para cobrir o corpo dele e protegê-lo do inverno. Pegou com cuidado o cotovelo de Frye, o peso da inconsciência afagou-lhe os sentidos, escondeu a lembrança e a culpa colocando o braço – agora irreversivelmente danificado – sob a manta. Colocou-se de pé quando a porta se abriu, as bochechas coradas, o sentimento desconhecido refletindo nas íris incandescentes de Craig o apertou o peito.
– Tem pessoas aqui – Cashel sussurrou.
– O quê? – Franziu o cenho.
– Há uma moça lá fora que garante ser noiva de Ahmes, e também há uma criança.
Seu coração contorceu-se dentro do peito. McBride engoliu em seco e passou a mão nos cabelos densos, seguiu o amigo pelo corredor, tentou abotoar a camisa mas botões lhe faltavam. O frio cortou-lhe o peito nú quando cruzou a porta principal, o vermelho das árvores ao redor de seu domínio o cegou momentaneamente, mas logo baixou os olhos para as figuras paradas ao pé da escada.
Uma jovem gorda e loira com um vestido azul profundo e simples segurava um garoto com cabelo caramelo, o menino olhava ao redor como se estivesse encantado, a jovem se encolheu quando a figura do conde emergiu das sombras para seu campo de visão. A moça puxou o menino para perto, ele pareceu finalmente retornar ao mundo real e segurou a manga do vestido dela ao ver Sable e Cashel descerem as escadas.
– Que fazem aqui? Não sabem que essas terras são proibidas? – Rugiu.
O garoto se escondeu um pouco mais, mas a moça não baixou os olhos, apesar de ter a visto estremecer brevemente. Ela deu dois passos na direção do Conde quando ele terminou de descer a escadaria, sua cabeça batia-lhe na altura do peito, mas a diferença de tamanho entre os dois não pareceu a intimidar.
– Sou Acácia Morningstar, e este é Oran Frye – apontou com o queixo para o garoto.
A simples menção à "Frye" o fez estremecer.
– E o que desejam em minhas terras?
– Viemos atrás de Ahmes, não temos para onde ir e–
– E acham que podem se abrigar aqui? – Sugeriu num rosnado, a moça se assustou, os olhos verdes arregalaram-se.
– Não temos para onde ir porque o povo quer Ahmes morto, somos da família dele, nos querem mortos também – Oran não se abalou, parecia acostumado com a conversa, mais do que deveria para a idade.
– Não me importo se são da família, irão morrer do mesmo jeito se ficarem! – Craig segurou-o pelo ombro, preocupado com o temperamento desequilibrado do Conde. – Voltem por onde vieram, peçam abrigo em Ilía, a guerra acabou e eles são pagãos, eles irão acolhê-los pois não temem o demônio.
– Onde está Ahmes? Se não podemos ficar ao menos me deixe vê-lo! – Acácia enrubesceu, as bochechas infladas num misto de medo e raiva.
O Conde se calou, não sabia o que dizer, Craig tomou a palavra.
– Ahmes não pode vir até vós – o semblante taciturno e impenetrável era intimidador.
– Por que motivo?
– A Besta esteve aqui ontem a noite.
***
Seu peito queimava ao observar a estima de Acácia por Ahmes. A moça deslizava os dedos pelas bochechas frias dele, as suas próprias bochechas estavam vermelhas e marcadas com um choro silencioso. Sable se compadecia da dor dela, principalmente ao capturar os olhos brilhantes de Oran que olhavam tudo como se estivessem em outro mundo.
– Como já lhes havia dito, deveriam partir o quanto antes, a noite não é segura nestas terras – murmurou McBride com frieza.
Acácia limpou as bochechas e o encarou com as sobrancelhas franzidas, as maças do rosto subiram quando encheu a boca de ar para conter a tormenta que havia dentro de si.
– E como posso eu partir quando Ahmes padece? Como posso abandoná-lo nestas condições?
– Garanto-lhe que será bem cuidado.
– Como foi até agora? Para que a Besta retorne e acabe o que começou?
McBride enrubesceu, estava prestes a enxotá-la dali, o sentimento que lhe tomava a mente era egoísta e desconhecido. Deu dois passos largos na direção dela, o menino segurou-a pela barra do vestido, Acácia abraçou-lhe mas não oscilou.
– A aparição do demônio não era esperada, creia no que lhe convier, mas jamais jogaria um homem aos lobos por puro capricho.
– Vossa família foi punida por algum motivo, creio que não seja por terem orado em demasia!
O Conde empertigou-se, os cortes em suas costas se abriram, sentiu o sangue escorrer sob a camisa de linho e aos poucos umedecer o tecido. Um ódio sobrenatural o cegou, o terror de ser acusado de provocar o ferimento da pessoa que...
– Já chega.
Era Cashel, parado ao seu lado, olhando-o no fundo dos olhos e implorando no silêncio que recuperasse o controle dos próprios sentidos.
– Se pretende permanecer em minha casa ao menos respeite-me, independente do que dizem as línguas de Avennar ainda sou um homem, um homem marcado pela Besta sim, mas ainda um homem. A Montanha me pertence e acredite, acredite quando digo que nada tenho a perder, eu partiria seu pescoço antes que pudesse responder. Eu partiria se quisesse, e rogue a Deus para que eu não o queira.
Acácia aquiesceu, os olhos arregalados finalmente baixaram, e até mesmo Craig parecia abalado demais para dizer qualquer coisa antes de Sable se virar e sair.
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Besta ⨳ A Sombra de Avennar [CONCLUÍDO]
Fantasy[SOBRENATURAL] [FANTASIA SOMBRIA] [+16] O reino de Avennar é um lugar amaldiçoado, uma sombra paira sobre as vidas da população e no vale mais antigo, uma besta se esconde em meio a densa floresta. Desde muito antes, a Montanha pertence à família Mc...