Capítulo Doze

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Ahmes sentia-se mais arrependido do que envergonhado

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Ahmes sentia-se mais arrependido do que envergonhado. Já passava da hora da pausa da tarde e ainda não havia visto McBride em lugar algum, condenava-se pela atitude de outrora, por se deixar levar por uma idiotice. Era apenas um desenho! Não entendia sua própria atitude, não compreendia com clareza quais pensamentos levaram-no a fazer uma coisa dessas.

Ele o havia magoado.

Guardou a pá de neve e foi até seu quarto para trocar a blusa suja de suor e carvão e colocar um agasalho, aproveitou para ir ao reservado e lavar o rosto e o pescoço, mas no final tudo não passava de um gesto para retomar a coragem. Caminhou sob os olhares das figuras dos quadros pintados por seu senhor, a melancolia escondida e refletida em cada olhar daquelas pessoas em desespero retratadas à óleo em cada tela.

Procurou-o nos cômodos vazios do andar inferior, no anexo da cozinha e na saleta de leitura onde compartilharam uma adorável conversa, mas não o encontrou. Não haviam ordens explícitas sobre subir até o outro andar, mas mesmo assim ponderou por alguns instantes se deveria realmente fazê-lo. Seu coração batia acelerado, inundando-o com um sentimento sombrio e inescrutável.

Degrau a degrau, os passos vacilantes, o tremor nos joelhos, a respiração impregnando nas paredes que o sufocavam. O chão do segundo andar era de pedra, as paredes do mesmo material, um corredor extenso se estendia para ambos os lados. Firmou os pés, havia outra exibição de pesarosos quadros nas paredes, alguns nem acabados, outros rasgados e manchados de vermelho de um modo sombrio.

Observou o escuro à sua frente, o feixe de luz suave que vinha da única porta no extenso espaço aberto depois da escadaria, onde estantes de livros empoeirados se estendiam pelas paredes cinza, como vidas se arrastando pela mortalidade daquele lugar esquecido. Cruzou a sala, a porta de madeira simples e entalhada com flores lhe lembraram do calor da primavera, mas ranhuras monstruosas se estendiam pelas paredes e maculavam o desabrochar perene das flores. Os dedos longos esbarraram na maçaneta pendurada, o ranger da dobradiça apurou-lhe os sentidos adormecidos, sua visão nublou-se e posteriormente abriu-se para o interior do lugar brilhante.

Janelas de vidro iam do chão ao teto, estava na parte oposta à entrada do casarão, admirava-lhe ver tanta luz entrar no lugar. Haviam caixas de madeira com tinta pelo chão, manchas de pigmento à óleo nas cortinas e nas paredes e no piso de madeira que quebrava a frigidez do restante da construção. Papéis amarelados pregavam-se na madeira do chão como retalhos de uma tapeçaria bordada, rostos desconhecidos e rabiscos ininteligíveis, uma seleção de quadros de olhos verdes e emaranhados de sombras sólidas e opressivas figuravam a decoração da parede principal. Uma versão maior do desenho de mais cedo se apoiava na parede em frente a porta, sua nudez exposta num quadro, as bordas danificadas por rasgos agressivos de massiva frustração.

E, no meio de tudo, Sable McBride se escondia.

Sem camisa ou terra para lhe cobrir, Ahmes podia ver os machucados que desapareciam por seus ombros, as manchas de sangue indistinguíveis substituídas por carne nova que se pregava ao músculo numa tentativa inconsciente de consertar o que se partira. Os cabelos escuros desciam pelas costas, cobriam as omoplatas e a marcação da espinha e dos músculos retraídos, gotas vermelhas reluziam numa mancha escura ao lado da figura estática e intimidadora.

Ahmes Frye se aproximou, a respiração presa na garganta como uma massa de podridão, o gosto metálico do sangue que corria. Tinha mais consciência do céu sobre sua cabeça do que da carne de seus ossos, e desejou veementemente que ele o devorasse. E de repente tudo era carne, e McBride era a fortaleza inteira, e quando seus olhos se encontraram a carne e as pedras caíram sobre ele e seus joelhos ecoaram ao bater violentamente contra o assoalho.

– Deverias ir embora antes que eu te mate – a voz rouca sussurrou para o vazio.

Apesar do arrepio que lhe subiu e arrepiou os pelos de todo o corpo, Ahmes sabia que não era uma ameaça. Olhar para ele o fez sentir que se não o segurasse o homem desabaria, ele parecia uma obra constituída por peças e essas peças estavam prestes a cair e se espalhar pelo chão e correr para os lados, desaparecendo pelas fissuras das paredes e do piso. O rapaz se aproximou de joelhos, o rosto taciturno e alquebrado do Conde mantinha-se impassível, ele só reagiu quando seus dedos tocaram a pele dele.

Contornou o maxilar bem desenhado com a ponta dos dedos indicador, anelar e médio, as unhas por cortar raspando nos resquícios de barba e solidão da casca vazia que se condensava à sua frente. O olhar vago foi encoberto pelas pálpebras pesadas, o piche desaparecendo pelo rosado da pele inchada de choro. Os lábios se abriram num lamento silencioso, e Sable se curvou na direção dele.

– Eu sei que jamais diria isso – Ahmes chiou.

– E o que eu tenho a perder? Eu sou um demônio, talvez eu não deva tentar ser outra coisa.

Ahmes se aproximou ainda mais, vendo a mão de McBride destruída, o papel amassado reluzindo como ouro próximo as panturrilhas dele. Seu coração tremeu. Deslizou os dedos pelo pescoço, afastou os cabelos do homem, a pele como porcelana rachada, se revelando ao toque como uma flor que desabrocha sob o sol. A mão desceu espalmada pelo braço, o toque cessou por um momento para que ela fosse parar em sua cintura forte, o rosto franzido num gozo de reconhecimento e acolhimento.

Puxou-o para o peito, o emaranhado de escuridão raspando em seu queixo, os lábios tocando seu mamilo destacado sob o tecido pelo frio e seu peito arrepiado e arfante. Sable desabou sobre ele e os corpos foram parar no chão, o peso do conde o prendia ao assoalho como um cobertor de dor e pregos, a solidão escorrendo e tornando-se parte sua.

– Você não é um demônio.

Seus olhos vaguearam pelo teto, os cavaletes pareciam costelas que circundavam e protegiam os pulmões da casa, toda a vida se mantinha naquele lugar. O calor da respiração de McBride batia contra ele e o reavivava. E, pela primeira vez desde que seu pai partira, Ahmes Frye chorou.

– Me desculpe, eu... eu não queria... – ciciou.

Sable o abraçou mais forte, era difícil respirar com toda a densidade da massiva escuridão que os abatia por dentro. Ahmes não sabia como reagir ao repentino contato, não sabia como reagir ao abismo que o encarava com os dentes cintilantes e o sibilar ameaçador de um ser que devora.

– Eu estou com medo, acho que ela vai partir – o tremular do tecido abatido pela respiração dele afagou sua pele.

– O que está dizendo?

– É a última lua.

McBride se levantou abruptamente, Ahmes fez o mesmo e estavam sentados um ao lado do outro. O Conde afastou os cabelos nebulosos do rosto, a melancolia recheava de letargia os espaços dentro dele que eram compostos de puro nada. O terror da morte, da partida, o terror de...

– O que lhe acontecerá? O que lhe acontecerá se ela partir?

Não houve resposta. Os olhares foram atraídos para as janelas quando o trotar de um cavalo se abateu pelas pedras lá fora, e Sable se levantou sem olhar para ele nem mesmo por uma parcela de segundo. Vestiu sua camisa amassada e com manchas de sangue que mais pareciam lágrimas escorrendo pelas costas. O asco fez a bile queimar na garganta, mas a margem condescendente da consciência logo entendeu que não havia nada de desprezível na dor de alguém.

***

N/A: Me empolguei e não coloquei recados nos capítulos anteriores, mas o que estão achando da historia? Acabei fugindo um pouco do que eu havia previamente planejado, mas estou rasoavelmente satisfeito com o andar dos acontecimentos, e esse com certeza é meu capítulo favorito^^

Andam reconhecendo as referências? Citei três livros entre este capítulo e os dois anteriores, mas acho difícil que reconheçam...

Bom, é isso! Logo menos tem capítulo novo! Não deixe de votar, mas um comentário também seria muito bem vindo.

Obrigado por ler e até a próxima :)

Besta ⨳ A Sombra de Avennar [CONCLUÍDO]Onde histórias criam vida. Descubra agora