Antes de tudo, Ahmes Frye deveria confessar que os mistérios ali resguardados lhe eram imensamente atrativos. Aos poucos a presença de Sable se tornava menos intimidadora e a densidade do ar se desfazia em cada suspiro. Eles estavam agora na sala de jantar principal ao invés do anexo, McBride estava na cabeceira da mesa de madeira rústica e Ahmes sentado à sua direita, ambos mantinham os olhos em suas tigelas de cozido.
– Pode me chamar apenas de Ahmes, senhor – o rapaz começou, o tom suave da voz parecia uma lâmina afiada transpassando a parede invisível e resistente que se punha entre eles.
– Certo Ahmes, prometo me lembrar – o timbre aveludado de sua voz era reconfortante, parecia afastar até mesmo o frio do inverno massacrante.
– A Besta esteve na vila – murmurou.
Viu Sable hesitar por um instante e então seus olhos se encontraram.
– Eu soube.
– Como? O Senhor...
– Eu estava lá – confessou, os dentes rasgaram a carne, o vermelho que se escondia rente ao osso assombrou Ahmes por uns instantes.
Frye engoliu em seco, os olhos arregalados.
– Sabe como ela é?
O Conde largou a carne no prato e limpou as mãos no guardanapo cor de carvão, então depois de suspirar avançou na direção de Ahmes e segurou sua mão sob a dele, a postura impassível mantinha-se inalterada.
– Ahmes, há certas coisas que merecem ser mantidas em segredo, certos mistérios no mundo devem-se manter mistérios, é assim que se estabelece controle e equilíbrio.
O toque quente lhe atrasava o raciocínio.
– Está me dizendo que aquelas pessoas mereceram morrer pelo equilíbrio?
McBride tornou a hesitar, a mão saindo de sobre a dele para parar sob o próprio queixo, os músculos dos antebraços tensos sustentados pelos cotovelos apoiados na mesa. Quando Sable McBride o olhou nos olhos outra vez, Ahmes estremeceu.
Seus olhos eram escuros...
Mais escuros que a noite...
– Tudo que penso é que mortes são necessárias, não se vence uma guerra sem sacrifício, e quando os fracos morrem o impacto é significativo mas ao mesmo tempo menor. É isso que os homens são, sacrifícios que sustentam o império, porque no fim sempre haverão mais soldados, e apesar de substituíveis, a morte de um rei opera de maneira significativamente maior sobre a nação a qual ele governa.
– Então meu pai mereceu morrer?
A pergunta foi como uma flecha, McBride se recostou brevemente na cadeira, parecia arrependido de suas palavras.
– Eu não acho... eu não acho que ele mereceu morrer Ahmes – se curvou, o rosto bem perto dele. – Por favor não interprete como se eu não me importasse, eu só acho que soldados vão para o campo de batalha sabendo que a única certeza é a morte, mas isso não significa que mereçam ou desmereçam qualquer coisa.
– Então acha que está certo? Acha que aqueles homens deveriam ir para lá e lutar pelos ideais de um único individuo, um indivíduo tão inalcançavel que muitas vezes nem exibe aos seus súditos seu maldito rosto? Acha que é certo o que seus pais fizeram? Acha que é certo que tenham te deixado aqui? Com a Besta?
– Não houveram muitos anos de paz em nossa história, não acho que valha de algo, mas também não há muito que se possa fazer enquanto os homens não viverem com igualdade. Tudo começou quando decidiram que precisavam de um líder, foi aí que tornou-se natural oferecer sua vida por algum propósito ou reivindicar a vida de outra pessoa só porque ela se submete ao subjugamento.
" Quanto a meus pais – ele exibiu um sorriso triste – acho que eles fizeram o que achavam que deveriam, então enquanto estiver preso aqui devo pelo menos fazer o que me foi designado."
Finalmente se afastou, o cheiro de orvalho e óleos perfumados tornaram-se uma lembrança sensitiva e os olhos brilhantes sumiram sob as mechas de cabelo. Ahmes Fry não disse mais nada até o fim do jantar...
***
Depois que terminaram de comer, o Conde o convidou para a saleta da primeira noite. Se acomodaram perto da lareira, Sable no tapete e Ahmes na poltrona, um cobertor ao redor dos ombros. A noite estava silenciosa, a exceção era o canto suave de uma coruja ali perto e do solene balançar dos desnudos galhos das árvores vermelhas que cercavam a casa.
– Achei que não iria voltar – murmurou McBride sem parar de rabiscar o caderno de couro que apoiava no joelho.
– É? – Se empertigou, tentando ver o que ele fazia.
– Sim – suspirou. – Fico feliz por ser idiota o suficiente para voltar.
Um sorriso travesso se desenhou no canto dos lábios dele.
– Minha mãe me odeia, se eu não morrer pelo menos posso ir embora deste lugar.
– Por que sua mãe te odiaria?
– Com toda certeza te diria se soubesse – suspirou abraçando o próprio corpo com mais força.
Sable suspirou.
– O que está fazendo?
– Fazendo um desenho seu.
A resposta o pegou de surpresa, sentiu as bochechas esquentarem, se levantando depressa para ir até ele.
– Por favor não venha, ainda não está pronto – ele apertou o caderno contra o peito, um sorriso discreto nos lábios, os brincos de prata contrastavam perfeitamente com os olhos de piche.
– Me deixe ver, está me desenhando sem permissão – tentou soar chateado ou sério, mas tudo que conseguiu foi sorrir ao ver pela primeira vez os ombros tensos do Conde relaxarem.
Segurou o antebraço dele e, apesar de terem praticamente a mesma altura, Sable tinha muito mais músculos e percebeu isso assim que o tocou. Ficaram se encarando por algum tempo, o ar compartilhado sufocando as células cerebrais que se forçavam para raciocinar e manterem-se em segurança. Ahmes esticou a mão e roubou o caderno, afastou-se depressa como se o homem pegasse fogo, McBride soltou um suspiro audível e tenso.
– Ainda não está pronto – murmurou.
O rapaz encarou o caderno em suas mãos, viu seu rosto fielmente traçado à carvão na folha de papel amarelada, sua expressão ansiosa e os olhos perdidos em algum lugar que nem ele mesmo era capaz de lembrar.
– És realmente bom – sussurrou, a voz arranhando a garganta.
– Acho que já está tarde, há muito a se fazer pela manhã.
Sable se aproximou e pegou o caderno, a expressão relaxada tinha desaparecido e o peso de seus ombros parecia ter retornado.
– Seu quarto é o último do corredor – completou friamente.
***
N/A: Espero que estejam gostando! O que acharam da interação desses dois nenéns? Estou apaixonada por essa história, mas meu coração dói porque no off ela já está bem perto do fim.
Bom, não esqueça de clicar na estrelinha! Até o próximo capítulo<3
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Besta ⨳ A Sombra de Avennar [CONCLUÍDO]
Fantasía[SOBRENATURAL] [FANTASIA SOMBRIA] [+16] O reino de Avennar é um lugar amaldiçoado, uma sombra paira sobre as vidas da população e no vale mais antigo, uma besta se esconde em meio a densa floresta. Desde muito antes, a Montanha pertence à família Mc...