A batalha

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A um lado da imensa campina move-se a multidão dos guerreiros Tocantins, do outro lado, a multidão dos guerreiros tapuias.

As duas nações se estendem como dois lagos formados pelas grandes chuvas, que se transformam em rios e atravessam o vale.

De um e outro campo levantou-se a pocema guerreira; e os dois povos arremetendo travaram a batalha.

Itaquê achou-se em frente de Canicrã. Ambos se buscavam; dez vezes tinham combatido; vencedores ambos, nenhum fora vencido.

Enquanto viverem os formidáveis guerreiros, não é possível quebrar a flecha da paz entre as duas nações.

Era preciso que um deles morresse para que o vencedor encostasse o tacape do combate e desse repouso à sua nação para reparar os estragos da guerra.

Quando os dois chefes se encontraram, os guerreiros de um e outro campo ficaram imóveis, contemplando o pavoroso combate.

Ubirajara de longe, apoiado em seu grande arco, admirava os dois guerreiros e pensava qual não seria o seu orgulho em vencê-los ambos.

Durava a peleja o espaço de uma sombra. Em torno dos chefes lastravam o chão os tacapes e escudos que se tinham espedaçado aos golpes de cada um.

Imóveis no mesmo lugar, só agitavam a cabeça e os braços; semelhantes a dois condores, que de garras presas aos píncaros do rochedo, se dilaceram com o bico adunco.

Um rugido espantoso atroou pela campina, que estremeceu a batalha e rolou pelas profundezas da floresta.

Pahã, a seta, era o último filho de Canicrã. Ainda curumim, pelejava ao lado do irmão, o guerreiro Crebã, cujo ombro mal alcançava com o braço.

Ele tinha nos olhos a vista da gaivota, e nas setas de seu arco, feitas de espinho de ouriço, a velocidade e a certeza do voo do guanumbi.

Quando caçava na floresta, divertia-se em matar as mutucas traspassando-as com suas flechas, que voavam mais rápidas e certeiras que as vespas venenosas.

Pahã saltara sobre os ombros do guerreiro Crebã para assistir ao combate. Admirando o valor de Canicrã, teve orgulho e inveja do pai.

Itaquê desfechara tão formidável golpe, que o tacape e escudo de Canicrã se espedaçaram em suas mãos, deixando-o à mercê do inimigo.

O chefe Tocantim arrojou-se, e já sua mão descia sobre a espádua do tapuia para fazê-lo prisioneiro.

O arco de Pahã sibilou duas vezes. Os olhos de Itaquê, os olhos do varão forte que nunca umedecera uma lágrima, choraram sangue.

As setas do curumim tinham vazado as pupilas do fero guerreiro, cuja vista era raio. Assim a jandaia rói o grelo do prócero coqueiro.

Foi então que Itaquê soltou o rugido pavoroso que fez tremer a terra. Mas o grito de espanto soçobrou no peito dos guerreiros e rompeu em um grito de horror.

Itaquê estendera os braços, hirtos como duas garras de condor. A mão direita abarcou o penacho e a cabeleira de Canicrã, a esquerda entrou pela boca do tapuia e travou-lhe o queixo.

Separaram-se os braços do guerreiro cego, e a cabeça de Canicrã abriu-se como um coco que se fende pelo meio.

Agitando no ar o crânio sangrento como um maracá de guerra, Itaquê arrojou-se contra os inimigos, buscando a morte que lhe fugia.

Quando o sol entrou, não havia na campina a sombra de um tapuia.

O velho herói voltou à cabana conduzido por Pojucã.

Ubirajara (1874)Onde histórias criam vida. Descubra agora