Futuro e Presente
Ao entrar no gabinete iluminei-me todo por dentro. Estava miss Jane adiante do globo de cristal, absorvida com certeza na visualização de um corte anatômico Um raio de sol coado pela vidraça transfazia em luz o louro de seus cabelos. Miss Jane era toda atenção. Seus olhos azues verdadeiramente bebiam algum maravilhoso quadro. O professor Benson estacou á porta, fazendo-me gesto de silencio, e assim permaneceu até que a moça desse volta a um comutador e regressasse ao presente.
— Papai, exclamou ela, estou no fim da tragedia, no crepúsculo da raça. Dudlee ganhou uma estatua... Boa tarde, senhor Ayrton. Desculpe-me o estar dizendo a meu pai coisas que nem por sombras o senhor pode desconfiar o que sejam. Compreendo que é indelicado falar em língua estranha na presença de pessoas que a desconhecem...
A bondade de miss Jane encantou-me; e, como a jovem não me olhasse nos olhos, pude replicar:
— Mas tudo nesta casa me é linguagem estranha! O que acabo de ver assombra-me de tal maneira que tão cedo não me reconhecerei a mim mesmo.
— Está fazendo progressos, Jane, disse o professor. O amigo Ayrton compreendeu muito bem a parte teórica da minha exposição.
— Ou compreendi, exclamei, ou pareceu-me compreender. Aqui o professor fala com tal simplicidade e clareza que nem parece um sábio Conheci um lá na cidade, e grande, a avaliar pela fama, com quem tive de tratar a mandado da firma. Pois confesso que não pesquei coisa nenhuma do que o homem disse. Esse, sim, parecia falar uma linguagem de mim nem sequer suspeitada...
— Não era um verdadeiro sábio, interveio miss Jane. Os verdadeiros são como meu pai, claros e fecundos como a luz do sol. Mas quer saber o senhor Ayrton o que eu fazia ha pouco?
— Não lhe contes ainda, Jane. Explica-lhe primeiro a função do porviroscópio, enquanto vou repousar um bocado. Sou velho e qualquer esforço além do habitual me cansa.
Antes que o professor Benson se retirasse, deu miss Jane um salto na cadeira, leve como a corça, e veiu beijá-lo no rosto.
— Este querido paizinho! murmurou, acompanhando-o com os olhos amorosamente.
Depois voltando-se para mim:
— Não é uma benção das fadas ter um pai destes? Como sabe conciliar a máxima inteligência com a máxima bondade!
— E com a máxima simplicidade! acrescentei. Não caibo em mim de gosto ao ver o homem que podia ser dono do mundo, se quisesse, tratar-me como se eu fora alguém
— Não se espante disso. Meu pai é coerente com as suas ideias. Todos para ele somos meras vibrações do éter
— Até miss Jane?
— Eu serei vibração de um éter especial, muito afim do que vibra nele, explicou ela a sorrir. Mas, sentemo-nos, senhor Ayrton, que ha muito que conversar.
Já disse que eu era um rapaz acanhado, sobretudo em presença de moças bonitas; mas o ambiente de familiaridade e franqueza daquela casa modificou-me logo. Cheguei até a suportar nos olhos os olhares da linda jovem, sem perder a tramontana como da primeira vez. É que nem remotamente lembrava aquele olhar o olhar malicioso das mulheres que eu conhecera. Fui percebendo aos poucos que de feminino só havia em miss Jane o aspecto. Seu espirito formado na ciência e seu convívio com um homem superior, dela afastavam todas as preocupações de coquetismo, próprias da mulher comum.
Isso me pôs á vontade. Sentia-me, não um moço em frente de uma donzela, mas um espirito diante do outro.
Aproveitei o ensejo para esclarecer-me a respeito do professor Benson. Soube que era descendente de um mineralogista norte-americano que um século antes viera ao Brasil estudar a composição de certa zona aurífera. Gostou da terra e nela se fixou, casando-se com a filha de um fazendeiro de S. Paulo.