Céu e Purgatório
Regressei á cidade alegre como um pardal depois da chuva. As palavras de miss Jane valeram-me pela abertura do céu. Com que prazer não trabalharia a semana toda estimulado pela perspectiva de vê-la cada domingo! A firma chegou a notar o meu assanhamento O senhor Sá olhou-me de soslaio e murmurou para o sócio de fraque:
— Parece que o seresma viu passarinho verde...
Custou a passar o tempo, tanto a minha impaciência alongava as horas. Mas passou e no domingo, depois de apurar-me na toalete como nunca, e lançar ao pescoço uma gravata nova verde-oliva com pintas de tom mais sombrio, voei, positivamente voei, ao castelo dos meus sonhos.
Já mais senhora de si, nesse dia miss Jane não falou tão exclusivamente de seu pai. Muito falou dele ainda, mas também discorreu de outros assuntos, dando começo afinal ás revelações que me serviram de base á novela.
Antes de mais nada externou-se quanto á situação presente do povo americano — e com palavras que me derrancaram as ideias. Sim, porque eu tinha a ingenuidade de possuir ideias assentes sobre o povo americano, apesar da mais absoluta ignorância da psíquica e rumos que levava esse povo. Ideias pegadas no ar do escritório, nas palestras dos cafés, na leitura de jornais redigidos por criaturas tão ignaras como eu, ideias que se nos grudam ao cérebro como o pó do asfalto nos adere ao rosto nos dias de calor. Do senhor Sá, por exemplo, ouvi dizer do americano (não a mim, está claro, que me não daria esta honra, mas ao senhor Pato): "Povo sem ideais, o mais materialão da terra. A gente do the biggest..."
Era Sá quem o dizia e pois a afirmação me penetrou nos miolos como a própria Certeza. Nesse mesmo dia, num café, como na roda em que me achava se falasse da América, repeti a esmo, entre duas baforadas de um cigarro:
— Povo sem ideais, o mais materialão da terra. A gente do the biggest...
Causou sensação, e é provável que algum dos presentes fosse repetir além, a bela síntese dos meus patrões — e por aqui se vê como certas ideias circulam á maneira de moeda e vão enriquecer o patrimônio ideológico de um povo...
Quando miss Jane abordou o assunto e de chofre perguntou-me que é que eu pensava do americano, imediatamente a bela síntese sapatesca me veio aos lábios:
— Povo sem ideais, o mais materialão da terra, a gente do the biggest... murmurei com ênfase.
O efeito, porém, falhou. Pela primeira vez não vi na cara de um interlocutor a expressão aprovativa a que eu já me afizera. Miss Jane, ao contrario, sorriu com o inesquecível sorriso do professor Benson e disse:
— Essa ideia não pode ser sua, senhor Ayrton. Soa-me a frase feita, das que se recebem no ar sem exame. A um povo que tenta romper com o álcool acha sem ideias? Poderá haver maior idealismo que o sacrifício de formidáveis interesses materiais do presente em vista de benefícios que só as gerações futuras poderão recolher? Se o senhor Ayrton observar um pouco a psique americana verá, ao contrario, que é o único povo idealista que floresce hoje no mundo. Único, vê? Apenas se dá o seguinte: o idealismo dos americanos não é o idealismo latino que recebemos com o sangue. Possuem-no de forma especifica, próprio, e de implantação impossível em povos não dotados do mesmo caráter racial. Possuem o idealismo orgânico. Nós temos o utópico. Veja a França. Estude a Convenção Francesa. Sessão permanente de utopismo furioso — e a resultar em que calamidades! Por que? Porque irrealizável, contrario á natureza humana. Veja agora a América Em todos os grandes momentos da sua historia, sempre vencedor o idealismo orgânico, o idealismo pragmático, a programação das possibilidades que se ajeitam dentro da natureza humana. Leia Émerson e leia Rousseau. Terá os expoentes de duas mentalidades polares. Não acha o senhor Ayrton que é assim?