Crepúsculo
O inesperado desenlace do drama negro da América deixou-me tonto por vários minutos. Depois que voltei ao normal miss Jane prosseguiu:
— No dia seguinte a essa noite trágica devia realizar-se a posse do 88.° presidente americano, James Roy Wilde, vulgarmente Jim Roy, negro de raça pura nascido em Sonora aos 23 de abril de 2188, doutor em ciências de governo pela Escola Técnica de Direção Social, despigmentado em 2201 e omegado vinte dias depois da vitória nas urnas.
Líder inconteste da raça negra, para a qual sonhava um destino altíssimo, merecia ainda dos brancos um respeito semelhante ao que na velha Roma o patriciado conferia aos libertos de excepcional valor. Era Jim um liberto do pigmento.
O choque das raças fora prevenido, o que valeu por nova vitória da eugenia. A sociedade, livre de tarados, viu-se no momento do embate isenta dos perturbadores ao molde dos retóricos e fanáticos cujas palavras outrora impeliam as multidões aos piores crimes coletivos. A exasperação branca do primeiro momento breve desapareceu. O bom senso tomou pé e o ariano pôde filosofar com a necessária calma. A opinião corrente admitia não passar a vitória negra de um curioso incidente na vida americana. Oriunda de cisão sexual do grupo ariano, fora golpeada de morte no próprio dia das eleições pela adesão das sabinas ao Homo. O próximo pleito restabeleceria o ritmo quebrado e do incidente nada restaria no futuro além de um pouco mais de pitoresco na historia da América — qualquer coisa como na serie dos papas, o pontificado da papisa Joana.
A serenidade dos brancos reforçava-se ainda na confiança que todos depositavam em seus lideres reunidos em convenção. Embora se ignorasse o que os chefes natos haviam decidido no concilio secreto, nem por sombras ninguém admitia que a ideia lá vencedora não fosse a mais eficiente e justa do ponto de vista racial.
Do outro lado os negros, passada a crise de entusiasmo do primeiro momento e dada a fé que lhes merecia Jim Roy, entraram mais a gozar as delicias do "omeguismo" do que a deslumbrar-se com uma vitória política evidentemente precária E assim a mais inesperada surpresa da vida americana não trouxe nenhuma das calamidades publicas que fatalmente acarretaria no passado — no tempo em que o desprezo da seleção humana deixava a sociedade encher-se de perigosíssimos bubões infecciosos.
Na véspera da posse de Jim, por precaução contra qualquer violência, Kerlog, de combinação com Abbot, fez irradiar a noticia do novo brinquedo inventado por esse encantador das crianças. Tratava-se de uma nova bonequinha que sabia dançar o tango da moda com perfeição de maravilhar a gente grande e mergulhar em êxtases de sonhos a criançada.
A criança tinha na América de 2228 uma importância capital. Toda a vida do país girava-lhe em torno, Era a criança, além do encanto do presente, o futuro plasmável como a cera. Os maiores gênios da raça se consagravam a estudá-la, para com tão dúctil matéria prima irem esculpindo a obra única que apaixonava o americano — o Amanhã. E a tal grau chegou a afinação da Puericultura Estética, a sublime arte definida por John Leland, que uma imaginativa de hoje, desta época em que o homem, absorvido nos horrores da luta pelo pão, quase ignora a existência da criança, nem de leve pode apreender o que significava em 2228 a Realeza do Baby. Realeza sim, como foi na velha França a dos últimos Luises divinizados. Em vez, porém, de toda a vida da nação revolutear em roda de um paxá como Luis 14, girava em torno da Aurora Humana. Sua Majestade Baby era o Luis 14 do século.
Em virtude disso é que o governo americano combinou com o senhor Abbot o lançamento da nova boneca nas vésperas da posse de Jim, como o melhor meio de prevenir a explosão de qualquer resíduo antissocial ainda subsistente na alma americana. E foi assim que o dia da posse chegou sem prenúncios da menor tormenta.