O Orgulho da Raça
Passei a semana agitado, menos com as revelações do ano 2228 do que com a impassibilidade de miss Jane.
Eu ardia, positivamente ardia, e traia o meu amor em todos os meus olhares e gestos; mas a enigmática jovem não dava ar de o perceber. No começo a admiti como um puro espirito, uma Cassandra sem nervos nem sangue. Depois duvidei da existência de tais puros espíritos e passei a ver em miss Jane uma "desentendida". Talvez que me julgasse muito inferior a si e adotasse semelhante atitude como o meio mais fácil de guardar as distancias. Mas era-me impossível conciliar isso com a amizade que ela me demonstrava e sobretudo com o ter só a mim no mundo depois de perdido o pai. Se de fato me julgasse inferior ou indigno de sua pessoa, certo que já me teria afastado do castelo. Não havia duvida, miss Jane fazia-se de desentendida...
Firmei-me nessa ideia e concebi um plano de ataque — uma demonstração amorosa que a arrancasse da sua mármore á impassibilidade. Ou tudo ou nada. Ou dava-me o coração ou punha-me no olho da rua.
Restava saber uma coisa só — se no momento da demonstração a timidez não me trairia a vontade...
Quando chegou o domingo, levantei-me mais cedo e fui ao mercado de flores. Comprei as mais belas violetas e a sobraçá-las parti para Friburgo no primeiro trem. Lá me dirigi ao cemitério onde repousavam os restos do professor Benson. Pela segunda vez eu levava flores ao jazigo do pai da maior maravilha do século — miss Jane...
Ao transpor o portão do pequeno cemitério meu coração bateu. Vi de longe um vulto querido a espalhar rosas sobre o tumulo do velho sábio Aproximei--me com um pressentimento n'alma — "é hoje"...
— Também aqui? disse miss Jane ao avistar-me, estendendo para mim a sua mão gelada pelo frescor matutino.
Vi que era chegado o momento. Armei-me de todas as coragens e comecei:
— Miss Jane, eu...
Mas engasguei. Já estava ela de olhos muito fixos no tumulo, com o ar de quem repete mentalmente o "morrer... dormir... sonhar, quem sabe?" de Shakespeare. Estava puro espirito em excesso...
Ficamos os dois silenciosos por alguns momentos. Depois miss Jane falou, como respondendo a si própria e sempre de olhos cravados no tumulo:
— Nem ele! Nem ele que penetrava o passado e o futuro adiantou um passo na decifração do enigma da vida...
Enguli de vez o meu proposito. Não era o momento. O formoso Hamlet de faces róseas, cabelos afogados em boina de veludo negro e corpo revestido de perfeito tailleur, pairava muito distante de mim.,.
Apesar disso tomei-lhe a mão e apertei-a de novo, suavemente. Miss Jane olhou-me nos olhos com a funda melancolia dos que penetram no mui longe das coisas — e nada veem do que vai por perto.
Dali seguimos juntos para o castelo, sem que a paisagem nem o ar fino da manhã dissipassem a tristeza dela e a minha decepção. No castelo, por uma hora, só falamos do professor Benson, com longos intervalos de silencio — intervalos de silencio em que eu lamentava a coexistência de puros espíritos em corpos assim tão perturbadores.
Depois do almoço, o primeiro que fiz em sua companhia, a nuvem das saudades passou e retomamos a nossa excursão pelo ano 2228.
— Onde estávamos? principiou ela.
— Em Kerlog, já libertado do pesadelo elvinista, respondi.
— Sim, é isso. As mulheres aderiram ao Homo e tudo mudou, como era natural. A raça branca formava novamente um bloco unido e apto a organizar a resistência.