Amor! Amor!
Miss Jane continuou:
— Depois de sua espaventosa adesão ao Homo, a líder do partido feminino caiu em si. Percebeu que o desvairamento no dia da vitória negra lhe quebrara a soberba linha das belas atitudes e a transformara numa perfeita louca á moda das velhas sufragistas britânicas. E envergonhou-se. Que pensaria dela o Presidente Kerlog? Como teria o líder branco, lá no intimo, recebido aquele arroubo de sinceridade explosiva?
Miss Astor amava a Kerlog. A nobre figura do Presidente, sua firmeza no governo, sua agilidade de espirito e sua serenidade de força construtiva, sedúziam-na de modo incoercível. E talvez até que no fundo toda a atuação política de miss Astor não visasse outro fim além de aproximá-la do líder branco, por emparelhamento num mesmo nível de prestigio social.
— Por que então contrapôs-se a ele nas eleições? perguntei sapatescamente.
— Porque a linha reta da mulher é sempre torta. Elvinismo, senhor Ayrton!... Matemática, ciência elvinista! Dois mais dois igual... ao que convêm. Mas miss Astor errava, se acaso se supunha diminuída na opinião de Kerlog. O presidente era Homo e, apesar de todos os progressos da eugenia, um Homo tão sensível ao contato feminino como... como o senhor Ayrton, por exemplo.
Corei forte. Momentos antes havia eu, sem o querer, está visto, tocado com o meu pé o mimoso pé de miss Jane, e não pude esconder a corrente elétrica que me percorreu o corpo. Seria que miss Jane, sempre tão desentendida, aludia a esse fato? Estava a minha amiga um tanto diferente naquela tarde. Menos impassível que de costume e assim como quem quer e não quer, como quem vai e não vai, como quem diz e não diz. Apesar de toda a minha pouca penetração feminina eu sentia isso, adivinhando nela os primeiros estremecimentos da mulher.
— E já que era assim sensível, continuou a jovem, o amplexo que no momento do perigo pôs miss Astor em contato com Kerlog calou fundo nas células presidenciais e impregnou-as disso que os homens chamam desejo.
Tive vontade de perguntar a miss Jane como as mulheres chamavam isso que os homens chamam desejo — mas me faltou a coragem.
— E daí por diante, sempre que a razão do senhor Kerlog se punha a pesar os prós e contras relativos a miss Astor intervinham as células abraçadas, colocando na concha dos prós a tara da saudade — e lá se ia a frieza da razão do senhor Kerlog. Pobre razão humana. Pobre hoje, pobre em 2228!... E tanto era assim, que logo depois da invasão da sala pelas elvinistas arrependidas o senhor Kerlog comentou o fato nestes termos, dirigindo-se ao ministro da Equidade:
— "Miss Astor sempre se apresentou diante de mim envolvida em atitudes, belas, não resta duvida, porque ha sempre beleza em todos os seus movimentos — mas atitudes que me chocavam como falsas. Nem uma só vez a vi ao natural. Foi preciso que o desastre sobre
— viesse e o terror se apossasse de sua alma para que eu a conhecesse como sempre desejei conhecê-la: mulher."
E lá consigo recordava a doçura do seu abraço.
Esse abraço ficou. Os dias se foram passando. Veio a Convenção Branca. Veio a dor de cabeça. Veio o omeguismo. Nada apagava das células cervicais do senhor Kerlog a impressão do doce contato.
Certa vez, reunido o ministério, os ministros perceberam que o Presidente olhava muito amiudê para o relógio O assunto em debate era o progresso do desencarapinhamento dos negros, matéria de especial atenção para o chefe do estado. Especial e demorada — menos naquele dia. Naquele dia o Presidente atropelava os seus auxiliares como que desejoso de encerrar mais cedo a reunião.
As informações estatísticas apresentadas pela Dudley Uncurling Company deviam ser bastante favoráveis, a avaliar-se pelo sorriso com que o líder branco as recebera.