Daphne
Daphne nunca se imaginara chegando a tal nível de desespero. Vender-se por uma cirurgia pareceria surreal dois anos atrás. No caminho para casa naquela noite, ela tentara encontrar qualquer motivo para aceitar a sugestão constrangedora de Lianna. Tempos de desespero exigiam medidas desesperadas, fora o que ela dissera. A moça ainda buscou na memória resquícios do jovem Johnson. Pouco se lembrava dele. Tudo o que recordava era que ele estava no último ano da escola quando ela ainda tinha seus doze despreocupados anos e que todas as colegas suspiravam por ele e pelos amigos, assim como qualquer pré-adolescente suspirava pelos garotos mais velhos.
Por menos que se lembrasse, tinha claro na mente o quanto o rapaz era gentil com todos, desde os professores, aos pais e às crianças mais novas. Tirar proveito de alguém como ele não lhe parecia certo em maneira alguma, mesmo que fosse o que definiria se seu irmão caçula sobreviveria ou não. Comparação injusta.
Eram quase três da manhã de domingo, o primeiro turno da noite que Daphne pegava em meses. Enquanto terminava de limpar as mesas, ela agradecia a Deus por ter feito os cliente saírem mais cedo do que o usual. Havia algo estranho no ar naqueles dias. As pessoas não ficavam até tão tarde fora de casa, as viaturas policiais passavam com mais frequência nas ruas, até mesmo os motoqueiros de gangues vizinhas simplesmente desapareceram de Nightville, exatamente como animais edáficos que se recolhem às suas tocas aos primeiros sinais de ameaça. Os únicos que ainda saíam para fora dos túneis eram, por alguma razão, os cobradores de Anton.
Criminosos tendiam a sumir quando um grande crime era trazido à tona, e em três meses, a cidade se lembraria do maior crime cometido naquela região. Dez anos sem uma solução, sem um culpado. A história fora tão encoberta, na verdade, que ninguém sabia se era real ou apenas uma lenda urbana muito bem disseminada na comunidade. As crianças a contavam em rodas na escola, adolescentes a contavam em fogueiras à noite, os adultos contavam às crianças para alertá-las. Daphne, por sua vez, estava no grupo dos que acreditavam que fosse uma lenda. Era melhor do que pensar que o responsável estava solto e pronto para atacar de novo.
— Tudo pronto pra fechar, Daph? — Daphne deu um pulo ao ouvir o grito de Lianna, que havia ficado com a parte mais desagradável do trabalho, checando os banheiros uma última vez. Ela apareceu alguns segundos depois, tinha uma expressão aliviada no rosto. — Nada de camisinhas hoje, graças ao bom Deus.
— Já terminei por aqui — respondeu a outra. Ela deu uma olhada na direção do relógio. Sentiu um arrepio no corpo, como se o objeto sem vida estivesse prestes a atacá-la com os ponteiros. Às três da manhã era normalmente a hora mais tensa das crises de Sean. Ela tinha que ir para casa, por mais que desejasse fugir dela. Não confiava no pai, nem na forma como ele aparecera na porta naquela noite prometendo mais uma vez uma mágica mudança de comportamento. Lianna se aproximou, fixou os olhos no relógio assim como a amiga fazia, pegou uma de suas mãos e não disse nada. Grudadas desde a infância, ela seria a primeira saber quando falar ou calar. Daphne suspirou. — Acha que Anton está cuidando dele?
— Ele prometeu, não foi?
Daphne assentiu, jogando-se em um dos bancos giratórios antes de enfiar os dedos na raiz dos cabelos. Permitiu a si mesma absorver o silêncio, sentir o cheiro amadeirado da construção do Thuner's. Apesar de ser um ambiente constantemente assolado pelas angústias de seus clientes irredentos, trazia certa paz no silencio, algo fácil de se encontrar em uma cidade do interior canadense. Nightville era um lugar desejado por aposentados e estrelas esquecidas que buscavam uma vida em anonimato completo. Nenhum deles, no entanto, poderia imaginar que tanta coisa acontecia naquele pedacinho do céu.
— Meu pai promete várias coisas, Nana — disse, por fim. — Acho melhor irmos para casa.
Não era necessário um carro para ir de casa até o Thuner's e nem o contrário. Precisava de disposição para encarar algumas ruas desertas e um pouco de inspiração para quebrar a exaustão do sábado à noite. Por isso, não demorou mais do que vinte minutos para aproximar sorrateiramente o ouvido da porta de casa, esperando por qualquer sinal de briga, discussão ou gemidos de um alcoólatra de ressaca. Entretanto, o silêncio que vinha do interior a preocupava mais ainda.

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Hey, Bartender
Mystery / ThrillerA cidade de Nightville foi, por muito tempo, uma das mais tranquilas e pacatas do Canadá. No entanto, quando alguns criminosos começam a aparecer enforcados nos arredores e cidades vizinhas, o medo se faz rei nos corações de toda a população. Daphn...