04. Invasão

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Thomas

Thomas não se lembrava da última vez em que finalmente havia conseguido fechar os olhos para os problemas e simplesmente relaxar. Era uma boa sensação aquela: recostar-se contra um álamo velho bem no topo de uma colina tão velha quanto, fechar os olhos e ouvir atentamente ao cantar despreocupado dos pássaros no céu e dos grilos escondidos na folhagem. Aquele era o único lugar onde ele se via completamente livre do som incessante das engrenagens. Nada além de si mesmo, da natureza e dos fones de ouvido ligados ao rádio.

Ele gostava daqueles aparelhos retrógrados muito mais do que dos aplicativos no celular. Apreciava as notícias em primeira mão, a interação dos locutores com o público, os pedidos de músicas. Fazia-o se lembrar de passar horas quando criança tentando fazer uma ligação premiada junto ao pai. Naquela época, Daniel Harrison ainda não havia se acidentado e nem precisava de uma cadeira de rodas para se mover dentro da própria casa. A depressão viera logo após o afastamento do trabalho por invalidez, e ele logo se tornou um morto dentro de uma casca viva, tornando o Thomas de catorze anos o novo provedor da casa.

Dentre as responsabilidades que adquirira naquela época, tinha de levar as irmãs ao Parque das Almas de vez em quando.

Era um lugarzinho mórbido, cercado por uma floresta traiçoeira e sombria que se estendia por alguns bons hectares. Havia ali dois pares de balanço velhos feitos de corda resistente e madeira envelhecida; um escorregador alto de segurança questionável; duas gangorras paralelas e, por fim, um pequeno circuito de madeira que terminava em uma poça de lama. Para a sorte de Thomas, que acabaria tendo que lavar as roupas quando chegasse em casa, Kaylee e Sophie eram mais fãs dos balanços.

Muito tempo antes, toda a área em volta havia sido uma fazenda imensa, repleta de criações e jardins prósperos. Os proprietários abandonaram tudo sem dizer uma palavra, de forma que um bosque crescera em volta, deixando intacto apenas um playground infantil e uma coletânea de lendas urbanas junto com ele.

Segundo a mais famosa delas, o dono daquelas terras fora rico ao ponto de inundar a si mesmo de paranoia. No tormento de um dia de tédio, reunira os filhos – três voluntariosos meninos – e decidira construir um pequeno parque para que se divertissem sem sair de casa. Dois dos garotos cresceram e, contra a vontade do pai, se alistaram para uma missão no Sudão. O outro decidiu ficar com a família, cuidando das terras e dos animais do sítio. Alguns meses depois, a notícia do falecimento dos dois que partiram veio. O pai adoeceu, parou de comer, de andar, e gradativamente, de respirar. O irmão que restara então se trancou dentro de casa para nunca mais sair. A propriedade simplesmente sucumbiu à floresta com o decorrer dos anos, deixando apenas aquele parque cheio de musgo e líquen como lembrança. Até os dias de Thomas, muitos relatos foram feitos, nos quais pessoas alegavam ver o filho sobrevivente perambulando por ali, sem jamais morrer ou envelhecer.

Como em um estranho ritual para acalmar e consolar o espírito do rapaz, algumas crianças mais corajosas criaram o hábito de visitar aquele playground. Elas deixavam flores nos balanços e no escorregador, desenhos feitos por elas mesmas e às vezes até alguns brinquedos. Kaylee gostava de colocar coroas de flores azuis pelo menos uma vez por mês. Sophie deixava brinquedos feitos por ela mesma nas aulas de carpintaria, e era Thomas quem tinha de levá-las em seu dia de folga, mesmo que seu ceticismo o incomodasse toda vez que as visse tão inseridas naquele mundo.

Ele havia convidado Daphne Campbell e seu irmão, mas ela não gostava muito daquele lugar. Compreensível. A verdade era que ninguém deveria gostar daquele lugar, muito menos Thomas, se fosse coerente consigo mesmo. O mecânico afastou a tormenta da mente, fechou os olhos e aumentou o volume. O único som além daquele era o das cordas dos balanços nos quais as meninas brincavam. Não havia nenhum fantasma por perto, fosse de um irmão solitário ou de um garoto perdido. Mais importante ainda, nada de sons de engrenagens.

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