O som estridente de tiros tão próximos de Ana a fez abrir os olhos de repente, voltando à realidade e conseguindo agir quando os zumbis começaram a gritar. Ela conseguiu terminar de escalar a grade, jogando-se no chão e sentindo o corpo inteiro doer pelo esforço que vinha fazendo há quase uma semana para se manter viva no mundo exterior, mesmo que aquele caos já estivesse próximo a completar seis meses. Seis meses sem comer algo decente ou um banho despreocupado. Seis meses sem conseguir dormir tranquilamente. Seis meses sempre em alerta para o pior que poderia acontecer.
Rafael continuou mirando as cabeças dos zumbis e os eliminando de primeira, como se fosse um atirador profissional e não um assíduo jogador de paintball e jogos online de tiro com os amigos. Certo, mas talvez os meses que ele passou no exército tenham ajudado a aperfeiçoar aquela prática, ela pensou enquanto se levantava para encará-lo melhor.
Quando ele terminou, virou em sua direção. Cruzando os braços e encarando sua antiga vizinha com uma expressão curiosa, que, na opinião de Ana, o deixava ridiculamente atraente, mesmo no fim do mundo. Com o cabelo escuro batendo ao ombro e um resquício de barba, que apesar das circunstâncias, aparentava ter menos que vinte e sete anos.
— Você tá legal? — Ele indagou, prendendo a arma no cinto e passando as mãos pelos braços de Ana, como se a examinasse e ao mesmo tempo se certificasse de que não estava alucinando. — Você...
— Eu tô bem. Obrigada... por isso. — Ela virou na direção da grade, encolhendo o corpo e lutando para não vomitar ao ver tanto sangue e miolos espalhados naquele ponto da fachada da escola. — Merda, acho que vou vomitar...
— Você ainda tem pavor de sangue? — Riu, ajudando-a a levantar e se apoiar nele. — Vem, você precisa descansar.
— Eu juro que tentei me acostumar, mas é impossível.
Os dois subiram as escadas, entrando para o que deveria ser a sala dos professores.
Ele a acomodou em um sofá de couro gasto enquanto abria um dos armários e tirava um pouco de água e comida para sua única companhia em todos aqueles meses solitários. Rafael entregou os alimentos para ela, puxando uma cadeira para descansar.
Ela passou os olhos pela sala com manchas de sangue sujando os azulejos nas paredes e o mural de fotos de alguns momentos felizes da história da escola. Rafael seguiu seu olhar, deixando que um suspiro nostálgico escapasse dos lábios.
— Uma pena não termos sido um par na festa junina no meu último ano de colégio.
— Ninguém mandou você ser velho demais pra mim naquela época. — Ela riu, deixando o biscoito velho e a água provavelmente da chuva de lado e abrindo sua mochila, conferindo se estava tudo certo ali para continuar o percurso. — Bem, acho que já vou indo.
— Já? — Olhou o relógio, fazendo uma careta. — Logo vai anoitecer. Não é seguro andar por aí à noite com essas coisas.
— Eu não tenho medo do escuro.
— Eu não disse que você tinha medo disso. — Cruzou os braços, revirando os olhos. — Pra onde você tá indo? Eu posso levar você amanhã.
— Não, tudo bem. Você não precisa se incomodar... — Ela deu de ombros, caminhando até a porta. — Eu vou ficar bem.
— Eu também perdi todo mundo. — Disse, fazendo Ana parar onde estava e voltar o corpo para encará-lo. Ele engoliu em seco, sorrindo fraco. — Foi assim que essa droga começou. Eu estava no meu apartamento minúsculo amaldiçoando o mundo inteiro por ter sido demitido quando meus pais me ligaram desesperados dizendo que a casa tinha sido invadida. — Sentou no sofá, retorcendo as mãos enquanto lembrava de tudo aquilo. — Eu não entendi de imediato o que eles estavam dizendo, mas eu percebi que tinha alguma coisa errada quando os meus vizinhos também gritavam e corriam de um lado para o outro no corredor, fugindo de outras "pessoas".
— Eu... Eu sinto muito.
— Se a droga do governo tivesse emitido um sinal de alerta mais cedo, talvez eu tivesse conseguido salvá-los. Eles moravam a menos de quarenta minutos de mim... — Ele a encarou com os olhos marejados. — Não havia nenhum sinal de doença, estava tudo normal até às cinco da tarde...
— Aí depois todos os canais ficaram com a mesma nota oficial até todas as casas terem a luz e a água cortadas.
— Pois é, como sempre a gente sempre se lasca.
Ana riu sem humor, sentando-se ao lado dele, deitando a cabeça em seu ombro como costumava fazer quando decidiam ficar na calçada da casa de Ana e observar as estrelas no céu noturno.
Ela suspirou, encarando o teto da sala que os dois faziam de abrigo para escapar do caos do mundo lá fora.
— Eu queria que fosse mais um dia de céu estrelado pra a gente observar sem se preocupar com mais nada.
— Eu também, Ana. — Ele suspirou, engolindo em seco. — Eu também.
— Às vezes eu só queria voltar no tempo. — Ela disse, bocejando logo em seguida e fechando os olhos para descansar. — Você também?
— Por quê? Pra ser mais atlética e treinar pro fim do mundo? — Riu, passando o braço ao redor dela, acariciando-a, como costumava fazer quando ficavam até tarde olhando o céu. — Ou ler todos os livros que tinha na sua estante?
Ana balançou a cabeça em negativa, ainda de olhos fechados.
— Pra quê então?
— Eu queria voltar no tempo pra...
— Pra...?
— Pra ter dito que gostava de você antes de... — Ela grunhiu, sendo vencida pelo sono e cansaço. — Antes de você ter se casado com aquela bobona...
Rafael riu, achando engraçado que nem mesmo dormindo ela esquecia daquele casamento desastroso que ele tivera e que o afastou de alguém tão especial. Alguém que ele amava mesmo sem se dar conta daquilo...
No entanto, o seu sorriso sumiu tão rápido quanto apareceu, deixando sua expressão sombria e melancólica ao perceber o quanto ele sentia falta daquela mulher e de tudo nela. Do sorriso perfeito, das bochechas que facilmente ficavam rosadas quando estava com raiva ou envergonhada, e principalmente dos cabelos ondulados tingidos de um vermelho vivo que sempre combinava com as roupas de brechós que ela adorava.
Rafael sentiu-se ainda mais triste quando percebeu que talvez era tarde demais para suprir com toda aquela ausência, mesmo ele ainda tendo total controle sobre sua consciência.
Ele levantou um pouco a camisa, deixando uma lágrima lhe escapar ao ver o curativo improvisado feito há algumas horas atrás. Virou o rosto na direção de uma Ana adormecida ao seu lado, sentindo-se um tremendo egoísta por colocá-la em risco daquele jeito apenas porque queria passar o pouco tempo que lhe restava na companhia de alguém especial, que choraria por sua morte, que nunca o esqueceria.
— Senti sua falta. — Ele disse, chorando silenciosamente. — Me perdoa, tá? Mas eu só queria te abraçar uma última vez...
Ele passou a mão pelo rosto dela, afastando os fios que insistiam em cair sobre os olhos fechados.
— Eu te amo.
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Não me deixe só |✔
Cerita PendekCONTO | +10 Ana odeia muitas coisas, mas nenhuma delas se compara a ter que lutar pela própria sobrevivência em um mundo dominado por zumbis e toda a desordem causada pelas criaturas. E como se não bastasse esse cenário apocalíptico, Ana ainda tem q...