Sela estava tentando não esbarrar em alguma palmeira enquanto caminhava pela praia, a areia morna da tarde acariciando seus pés macios. Estava sozinha, queria sentir a brisa fria sob seus cabelos. O único momento em que se sentia, de fato, livre.
A garota tinha muitas amarras. Primeiro, para que fosse útil à sua família, fora enviada para a capital do reino, onde fora treinada para ser curandeira, e pagaria os custos de seu treinamento trabalhando na cidade. Ainda devia valor suficiente para comprar uma mansão, apesar da fama que alcançara. A segunda amarra era a sua deficiência. Sela é cega de nascimento, e as únicas coisas que ganhara para compensar foram uma audição e olfatos mais apurados.
Ao menos, o olfato era útil para identificar venenos e outras substâncias, o que facilitava seu trabalho. Quanto a audição, a única utilidade que pensava era para escutar os batimentos de seus pacientes nobres, não precisava encostar o ouvido sobre o peito para ouvi-los, bastava chegar perto. Nobres odiavam o toque da "ralé".
Naquele lugar, com o vento levando os fios aos céus, a água e a areia nos pés e nas pernas, ela sentia que nada a prendia. Queria ficar lá para sempre, escutando o som daquele choro.
— Choro? — disse em voz alta, questionando os próprios pensamentos.
Foi quando se focou em escutar. Um choro baixo, animal, pedindo ajuda. Era muito similar ao choro de um cachorro. Era um cachorro, tinha certeza agora.
Então ela pegou um dos elixires da bolsa que sempre carregava consigo, um que tinha cheiro forte, e derramara próximo à beira do mar, onde a água não chegava e estavam seus calçados. Em seguida fizera uma loucura. Pulou na água e tentou alcançar o pedido de socorro do pobre cão. Escutava-o em meio ao som das ondas, sentindo o sol sob sua pele ficando cada vez mais fraco, indicando que estava anoitecendo.
Ela correu enquanto seus pés ainda tocavam o leito do mar, a força do oceano indecisa do que queria, empurrando-a para a direção da costa e depois puxando-a, com toda força, para dentro dele. Querendo engoli-la por completo.
Sela parou quando deu o último passo em que ainda alcançava o chão sem que a cabeça ficasse submersa. Ela não sabia nadar. Como faria aquilo? Decidiu usar a única coisa que sabia sobre natação, boiar. A curandeira respirou fundo, e manteve os pulmões cheios quando deixou que a água a segurasse. Quando estava boiando, com o mar decidindo se ela vivia ou morria, se ela voltava para a costa ou se perdia em sua imensidão junto àquele cachorro, usou um bater suave de mãos e braços, com cuidado para não perder a compostura de boia, para aproximar-se do cão e pegá-lo.
Ainda era pequeno, tão pequeno. Pouco maior que um recém-nascido. Sua pelugem era curta, pelo que sentia. Colocou-o sob a barriga, onde não pesaria muito perto do rosto. Ele ainda estava com medo, mas se acalmou quando ela o pegou. Confiou nela instantaneamente, como se fosse algo do destino.
Sela focou no cheiro do tônico que colocara na praia. Começou a segui-lo com os nados leves que fazia, empurrando seu corpo de modo a direcionar para onde ia. O cãozinho continuava se debatendo em cima dela, de pé, tremendo, olhando para a água e soltando grunhidos de ameaça para o mar, como se tivesse o xingando por tê-lo sequestrado.
Eles finalmente chegaram à costa, onde o animal rapidamente pulou dela e se remexeu, secando-se. Logo em seguida, começou a abanar o rabo. Sela não conseguia ver o rabo balançando, mas sabia pelo barulho. Ele começou a se esfregar nela, agradecendo.
— Maso, seu nome será esse. Tem um belo significado na língua antiga.
Ele lambeu o rosto dela, o que a fez presumir que gostara do nome.
Foi quando Sela escutou um barulho.
— Por que salvou ele? — Perguntou uma voz masculina, relativamente jovem. Os passos eram curtos e indicavam um andar arrogante.
— Como assim por quê? Era só um cãozinho, morrer afogado seria horrível.
— Eu deveria ter encontrado outra maneira de sacrificá-lo, uma onde ele não sofreria. Sinto muito.
— Sacrificá-lo? — Questionou ela, com uma expressão irritada que fez o garoto jurar que se não fosse cega, estaria o comendo com os olhos.
— Ele nasceu com um olho cego, então... — Ele já sabia o que viria a seguir. Já se sentia culpado.
— Então os cegos não servem para nada, e devem ser sacrificados, Vossa Alteza? É isso que pensa?
O príncipe cambaleou, assustado. Ela era cega. Como poderia saber quem era? Quase como que adivinhando seus pensamentos, ela respondeu sua dúvida:
— Você cheira a um perfume de Argoria glorieus, uma flor que foi extinta, os únicos exemplares vivos que foram recuperados estão no jardim real. Sou curandeira, conheço o cheiro porque há como fazer um veneno através da mesma planta. Só a família real a usa como perfume.
— É boa, — disse ele, então fez uma pausa, um suspiro, e continuou — sinto muito. Fui um idiota.
Ela fez que não com a cabeça.
— Quando se quer um cão de caça e se nasce um cego, é normal que você queira descartá-lo. — Respondeu ela, parecendo irritada, mas não mais com ele.
— Isso pareceu pessoal. Foi o que fizeram com você?
Percebera que ela tinha as características físicas do povo do norte, onde as mulheres são guerreiras e matriarcas das famílias, os homens atuando apenas como seus guardiões e companheiros, completamente diferente do resto do reino de Argoria. Se ela fosse de lá, e nascesse assim... Aquele povo consideraria seu nascimento uma desonra, digno de descarte, assim como ele fizera com aquele cão.
— Eu fui um idiota, realmente sinto muito.
— Você é jovem como eu, príncipe. Estamos na época de aprender o certo e o errado. Posso ser uma pessoa horrível por isso, mas fiquei feliz que se sentiu mal e culpado. Que tipo de súdita se sente bem quando o herdeiro do trono se sente mal? Nós dois estamos errados, imperfeitos, humanos. Apenas imperfeições diferentes.
— Você é sábia, garota.
Ela percebera que não dissera seu nome.
— Sinto muito, nem ao menos me apresentei. Sou Sela, Sela Wisllow.
Wisllow. Os nobres que praticamente governavam todo o norte, como o príncipe suspeitava. Ela tinha toda a aparência dos Wisllow que já havia conhecido: os cabelos loiros quase brancos, a pele branca como a neve, os olhos azuis-claros envoltos em prata, o nariz pequeno e suave, os lábios rosados.
O sino da cidade tocou, o que fez Sela quase dar um pulo.
— Droga, demorei demais. Preciso ir, Vossa Alteza. Sinto muito.
— Me chame de William.
— Sinto muito, príncipe William.
Ele queria dizer para que ela o chamasse apenas de William, mas ela não deixou, levantando-se e esbarrando nele, fazendo uma expressão surpresa quando passou a mão no rosto dele, tentando identificar se ele era uma palmeira ou se ela realmente tinha esbarrado nele.
— Desculpa, desculpa. Sou desastrada. E você é bonito, príncipe.
Ele ficou confuso, mas sorriu.
— Você e o seu cãozinho também. — Fora tudo que conseguira pensar. Se sentiu um idiota.
— Como ele é?
— Ele tem pelo cinza-reluzente, curto. Olhos azuis, claros como os seus.
Não que Sela entendesse o que aquelas cores significavam. Era um dos problemas de ter nascido, não se tornado, cega. Ela não fazia ideia de como eram cores.
— Obrigada por contar. Espero vê-lo novamente algum dia, desde que não seja para te tratar como curandeira. Jamais desejaria que ficasse doente, príncipe.
Que garota interessante, foi tudo que conseguiu pensar enquanto ela ia embora. Quando procurou o cachorro e não o encontrou, notou que ele a seguiu, com o rabo abanando, todo molhado.
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Castelo de Cores
FantasySela Wisllow é uma garota cega nascida numa família de nobres mulheres guerreiras do norte, que a rejeitam por sua fraqueza. Ela é enviada a capital para aprender a ser curandeira, e quando finalmente se torna renomada na área, é chamada pelo rei pa...