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Antonella

Abri meus olhos, ao ouvir o som do galo do lado de fora. Quando me levantei, um frio terrível passou pela minha camisola de cetim. Já conseguia ouvir as freiras passando pelos corredores. Os dias sempre começavam cedo aqui no convento.

— Lea, acorde. — Sacudi o corpinho da minha irmã.

— Mas ainda é cedo, Nella. — Ela respondeu, se enfiando mais nas cobertas

Ela tinha 12 anos. Graciosa, saudável e belíssima. 

É estranho pensar que ela nasceu em um convento, lugar onde só existem velhinhas que decidiram servir a Deus pelo resto de suas vidas, se privando dos prazeres que vieram a concebê-las. 

Os cabelos longos e cobres se espalharam no travesseiro. Ela era idêntica a mim. Mas ao mesmo tempo tão diferente.

— Eu não quero perder o café da manhã. E as cabras foram soltas hoje, lembra? — Ela tirou o lençol do rosto e me encarou com brilho nos olhos. Olhos castanhos escuros, como os meus.

Lea amava esse lugar. A fazenda, os campos, as grossas paredes frias de pedra e até as freiras.

Nossos pais vivem conosco, porém precisam se disfarçar de aldeões. Todo cuidado é pouco.

Eu, Antonella Martinelli, sou muito especial para a máfia. Existe uma guerra entre italianos, alemães e colombianos para quem vai colocar as mãos em mim primeiro.

Lea sabe, mas ela se esforça para não ligar. Se eles se quer souberem da existência de mais uma de mim...

Meu pai era consigliere da máfia italiana de Treasure, cidade em que nasci. Mas foi permitido pelo Capo ser destituído do cargo por um tempo, e se esconder. Os Rivais, máfia colombiana, queriam me casar com o Sottocapo deles. Seria uma ótima aliança, até você descobrir que ele era 20 anos mais velho que eu. Na época, eu tinha apenas 12 anos e eles queriam me casar o quanto antes. Mas meus pais nunca permitiriam uma atrocidade como essas. Poderíamos ser considerados pessoas más, porém estupro é algo desumano.

Vestimos nossos vestidos brancos, para nos diferenciar dos hábitos das freiras, e corremos pelo corredor para ir para a igreja.

— Nada de correr pelos corredores, meninas. — Uma das freiras repreendeu em inglês.

Estar na Irlanda ainda confunde os idiomas na minha cabeça. Latim, inglês, italiano, espanhol e francês. E um pouco de russo e alemão. Sou uma poliglota, o que me deixa ainda mais cara.

— Desculpe, irmã Jane. — Respondeu Lea. Como ela conhecia todas as freiras?

Caminhamos para fora e avistamos nosso pai seguindo para a estrebaria. Todos os animais desse lugar eram nossos. E era o nosso dinheiro que mantinha esse convento. Era o esconderijo da nossa família.

Pegamos nossos pratos e entramos na fila para o café da manhã. O barulho dos animais, do vento e da conversa nas mesas ao ar livre se misturava. Queria me sentir liberta como eu vejo que Lea é. Mas sei que não posso, em algum momento minha hora vai chegar.

Buongiorno, ragazze.— Nossa mãe, Angela, que servia o mingau, cumprimentou. Sua barriga redonda como uma melancia, na espera de seu terceiro filho. Eu e Lea respondemos na mesma hora o que causou uma risadinha de ambas. — Não se esqueçam, hoje vocês tem treinamento no porão.

— Aaah, mamãe. Eu não quero aprender a lutar, atirar, ou tentar matar uma das nossas professoras idosas com a força do meu braço. — Disse Lea.

— Você precisa. — Rebati. — Não quero que você seja vendida como eu.

— Você não foi vendida, Antonella. — Mamãe revirou os olhos e colocou uma colher de mingau em meu prato. — Se o acordo tivesse seguido em frente, você hoje não estaria em um convento.

— Eu só estou tentando convencer ela a ser uma garota que seja tão cotada como eu, mamãe. — Respondo com sarcasmo.

Eu estou preparada para quando meu momento chegar. Espero que esse casamento me deixe rica, porque sou excepcional demais para ser vendida por um preço tão baixo.

Me sentei com Lea em nossa mesa e esperamos nossos pais. As freiras foram tomando suas cadeiras em mesas separadas dos aldeões, assim como alguns frades. E a nossa no centro, protegida por cada pessoa aqui presente.

Muitos homens disfarçados de irmãos, na verdade são soldados que vieram com meu pai. A maior parte são nossos tutores. Sou muito boa em todas minhas disciplinas. Estratégia, aconselhamento, línguas, psicologia e manipulação, luta corporal, medicina, tortura, teatro...

Tenho aulas de educação sexual, mas é apenas teoria. Na prática, eu poderei usar do teatro.

Além de Lea e eu, existem outros filhos e filhas dos soldados de papai, que nasceram ou cresceram aqui. Não tenho interesse em nenhum dos filhos dos soldados, por mais que eles tenham em mim. Nenhum deles consegue ser melhor que eu.

Papai sempre diz que, em outras circunstâncias, eu seria uma consigliere perfeita. Mas o machismo da máfia Rival não permitiria.

É por isso que estou sendo preparada para massacrar aqueles filhos da puta.

O plano é perfeito. Serei infiltrada como esposa do futuro chefe - filho do chefe da Rival - e passarei as informações necessárias para uma invasão e aniquilação. E como só restará a mim viva, receberei toda a herança dos mortos. 

— Sabe, meninas — Papai se senta à nossa frente — Uma coisa que sinto falta de morar em Treasure é uma boa carne de porco assada. — Eu e Lea parecemos mais com papai. Levemente bronzeada, como café com leite.

Lea olha para ele com indignação. Fomos "obrigados" a entrar em uma dieta vegetariana. No convento ninguém comia carne, apenas os derivados dos animais, como leite e ovos.

— Eu nunca quero comer os animais, papai. — Ela afirma, e então começa a pular na cadeira e apontar para uma direção atrás de papai. — Olha, a mamãe está trazendo seu prato. — Meu pai se virou para ver mamãe caminhar até nós com um sorriso.

Observei sua tentativa de caminhar mais rápido até nós, equilibrando os pratos em ambas as mãos. O vestido estava levemente suspenso, devido a barriga. Penso em como deve ser difícil ter um bebe nessa idade e nessas circunstâncias.

— Talvez eu deva ajudá-la.

Quando me levantei e caminhei um pouco, olhei para mamãe a distância, seus olhos estavam fixos em mim, enquanto uma freira - que era informante de meus pais - a parou para cochichar algo em seu ouvido. Mamãe abriu a boca e derrubou os pratos no chão. Lágrimas brotaram em seus olhos e a dor se formou em seu rosto. Papai e Lea correram até ela. Eu fiquei estática em meu lugar.

Um breve arrepio correu pelo meu corpo como uma corrente elétrica, e soube, que minha hora era chegada.

Nos encontraram. 

A filha do consigliereOnde histórias criam vida. Descubra agora