Erotismo, laranja e açúcar

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  Ela sentou-se no último banco disponível do ônibus, com expressão de vencedora. E de fato era. Afinal, nunca conseguia fazer a longa viagem de sua casa até o trabalho sentada. Sempre em pé, mal respirando de tão apertada. Seu sonho era poder ler seu livro no ônibus. Carregava sempre um, na esperança de poder sentar-se para ler. Nunca conseguia. Pois naquele dia seria a protagonista da cena que ela sempre achou por demais elegante: um livro nas mãos, sem olhar para os lados, virando romanticamente as páginas, degustando cada palavra. De vez em quando, corrigia a postura, fazendo questão de deixar a coluna bem ereta, equilibrando-se nas muitas curvas daquele caminho. Uma amiga, companheira das manhãs lotadas, ria dela.

– Você nem sabe ler direito e fica aí, fazendo pose. Tô vendo esse livro na tua bolsa há muito tempo, sempre a mesma capa, já até decorei.

– Claro que sei ler. E gosto muito, é que não tenho tempo, respondeu sem sequer levantar os olhos das páginas.

Era verdade que gostava de ler, como também era verdade que estava aparentemente sempre com o mesmo livro na bolsa. Mas só aparentemente, pois o que a amiga não sabia é que ela mantinha a mesma capa trocando frequentemente o miolo, um segredo que jamais revelaria a alguém. Acontece que adorava ler contos eróticos e, para não chamar a atenção e ser julgada sobre sua preferência literária, encobria o livro escolhido sempre com aquela capa dura, arrancada de um exemplar que encontrara no lixo.

A história estava boa, a trama perfeita, a pose de leitora exemplar, quando uma curva mais acentuada, somada à direção descuidada do motorista, fez com que todos no ônibus, inclusive ela, se desequilibrassem. A cena que se deu foi aquela que todos imaginam: passageiros gritando, muita gente reclamando, bolsas e sacolas no chão, celulares voando. Ela sentiu-se com sorte, pois estava sentada, conseguiu segurar-se, enquanto a amiga xingava o motorista de todos os nomes possíveis de se lembrar àquela hora da manhã. A calma foi voltando, cada qual foi descendo em sua parada – inclusive a amiga, o ônibus esvaziando e tudo voltando ao normal.

Quando se levantou para descer, nossa leitora esbarrou com o pé em um embrulho no chão, provavelmente caído de alguma sacola na confusão da curva malfeita. Ela abaixou-se e pegou algo, embrulhado num papel azul, coberto por um saco plástico transparente, preso por fita adesiva amarela. O colorido embrulho cheirava muito bem, um adocicado que chegava a dar água na boca. Sem saber o que fazer e, como era a última passageira a descer, quis entregar o embrulho para o motorista, que se recusou a pegá-lo.

– Moça, não tenho como deixar nada na garagem agora. E a gente não pode ficar carregando coisa de passageiro.

– Mas parece ser alguma coisa de comer, está cheirando bom, com certeza quem perdeu vem buscar logo.

– Ah, se é de comer, aí que a gente não pode carregar mesmo. E eu já estou atrasado para a outra viagem. Então se a moça puder fazer o favor de descer e entregar para o fiscal que fica no postinho ali, embaixo do viaduto, eu agradeço.

Ela desceu do ônibus contrariada, não estava em seus planos andar até o viaduto, mas pensou na pessoa que poderia vir atrás do pacote. Quando lá chegou, nada de fiscal, o postinho estava vazio e ela não poderia esperar. Foi para o escritório, contou do acontecido aos colegas, houve quem dissesse que o cheiro era bom mesmo, que ela deveria abrir, houve quem dissesse que não era certo, o fato é que, quando chegou o horário de almoço, ela voltou até o viaduto para procurar o fiscal.

O homem a atendeu com cara de poucos amigos, se mostrou bem pouco interessado, disse que se alguém tivesse que vir atrás já teria vindo de manhã. E mais, afirmou que não queria a responsabilidade de ficar com o embrulho lá, não era a sua obrigação guardar nada para ninguém, que ele não era posto de achados e perdidos e que levasse com ela o tal pacote. Ela voltou para o escritório com aquilo que já se tornava um estorvo em suas mãos. Bolou um plano, pegaria o mesmo ônibus no final da tarde e, como sabia que alguns passageiros da manhã também o pegavam naquele horário, perguntaria se alguém dera falta do pacote, talvez encontrasse o dono. Mas o plano foi em vão. Poucos lhe deram atenção e os que estavam na lotação de manhã não eram donos do pacote.

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