A GALINHADA

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Ela era merendeira. Dizia ter nascido para isso – dar de comer aos pequenos é a melhor função que a vida pode me oferecer, repetia todos os dias.

Trabalhava em uma escola rural, que atendia não só às crianças que viviam nos sítios vizinhos, como também as que viviam na cidade, porém desprovidas de qualquer coisa que pudesse ser classificada como uma situação familiar. Essas eram a que mais tocavam o coração da merendeira, já não tinham a menor condição de provar fora dali uma boa refeição, dormir em um lugar confortável ou desfrutar de algo que minimamente se parecesse com um lar.

Era para essas crianças que a merendeira cozinhava arroz branquinho, colorido com feijão, toicinho e cenoura picadinha, cuscuz caipira de legumes, canjiquinha com quiabo e linguiça, arroz e feijão tropeiro, bolo caipira de fubá, brevidades, pudim de côco, rabanadas com muita canela, bolachinhas de leite e tudo o mais que ela pudesse fazer de gostoso com as doações que recebia dos sitiantes.

Acontece que cantina da escola havia sido instalada em um pátio improvisado por ordem, graça e decisão unicamente da moça, que não se conformava com o fato de que ali estavam crianças que muitas vezes não tinham colocado nada no estômago nem no dia anterior. Portanto, que aquele fosse o local para alimentar não só o espírito, mas também o corpo. Esse era o seu lema. Foi com o seu salário que mandou construir um fogão a lenha no meio do pátio, comprou temperos e arrecadou panelas usadas de vários moradores.

E foi assim que comprou uma briga com o prefeito da cidade, cujo cargo lhe dava toda autoridade sobre a escola pública. O lema do homem era diametralmente oposto ao da merendeira: não estou aqui para dar de comer a vagabundo nenhum, dizia a quem quisesse ouvir, desconversando quando lhe perguntavam se de fato acreditava que aquelas crianças eram realmente vagabundas ou somente crianças.

A insistência da merendeira em manter a cantina no meio do pátio da pequena escola tomou ares de oposição ao prefeito ,que insistia em afirmar que sua obrigação era tão somente dar teto, paredes e carteiras para que as crianças aprendessem. E que os salários de professora e merendeira (esta última totalmente dispensável), fossem de responsabilidade do Estado e não da Municipalidade. "O dinheiro dos meus eleitores já está muito bem empregado na infraestrutura da escola e é somente essa nossa responsabilidade".

A imprensa deitava e rolava na rivalidade entre os dois, alimentando brigas e dizquedisses entre ambos. Até que a situação se tornou insuportável para o homem, que via a sua autoridade de magnânimo prefeiturável, a sua posição de figura Número Um da Municipalidade ser mal falada na boca do povo e descer ralo abaixo, "por causa daquela mulherzinha", como não se cansava de repetir.

A vingança veio rápida. Como não havia autorização legal para a cozinha funcionar ali, o fogão de lenha foi embargado. E como a merendeira continuou a cozinhar, foi presa. "uma noite na cadeia vai lhe fazer bem", disse o prefeito em sua casa, enquanto devorava farto jantar, sob o olhar atônito de sua esposa. Ao sair da cadeia no dia seguinte, a merendeira correu até a escola e se deparou com mantimentos espalhados pelo chão, a lenha do fogão molhada, panelas amassadas e pratos quebrados. 

Com as crianças, ela tentou colocar tudo no lugar e cozinhar algo que pudessem comer. O cardápio foi mandioca cozida que alguém trouxe para ajudá-la. A reação de todos foi tão boa que ela decidiu que passar a noite na cadeia não era ruim, ela poderia passar por isso todas as noites, conquanto que tivesse o que dar para as crianças comerem no dia seguinte. E foi assim que praticou o seu primeiro furto.

Era uma galinha, pequena e magra, que ela conseguiu tirar muito discretamente de um quintal. Mas não foi de um quintal qualquer. Foi do quintal da casa do prefeito! Tão insignificante era o animalzinho, que nem deram por sua falta. Mas temperada no arroz, com cebolas e coentro, fez tanta diferença que as crianças lamberam ossos, pratos, dedos e beiços. E a merendeira voltou para a cadeia. Não pelo crime de furto, pois este não foi descoberto, mas pelo não-crime de alimentar as crianças daquele povoado.

Não foi uma só vez que ela passou no galinheiro muito bem instalado no quintal do homem. Sempre que podia, ao sair da cadeia, onde já acostumara passar suas noites, pegava ali a menor, a mais discreta e insignificante galinhazinha para engrossar o caldo da alimentação da gurizada. E se divertia com sua vingança velada. Só tomava cuidado de não acordar Teteia, a gorda e velha galinha que diziam ser a xodó do prefeito, tratada com a melhor das rações, a quem ele dava carinho na cabecinha todas as tardes depois do expediente, uma criatura que jamais iria para a panela e que certamente só morreria de morte morrida, isso se ele não pudesse evitar.

O tempo passou e as crianças voltaram a comer bem naquela escola. Até que o prefeito, profundamente irritado com a teimosia da moça, com sua ousadia e desobediência civil, resolveu que ela seria transferida para a cadeia da capital. Ele tinha poderes para isso, como explicaram para a merendeira o padre, a professora, a costureira, o farmacêutico e o dono do jornal da cidade. O apoio que essas e outras pessoas lhe demonstraram não fora o suficiente e o mandado de prisão já havia sido expedido. A cozinheira chorou, sapateou, fez discurso em frente à Prefeitura, mas ninguém enfrentou o prefeito. Naquele final de tarde ela seria transferida par não mais voltar.

Resolveu então que faria naquele dia a última e farta refeição para os alunos, que contavam com seu carinho, tempero e coração bons. Ao sair da cadeia, entrou mais uma vez sorrateiramente no galinheiro prefeiturável. E de lá tirou Teteia, que de tão velha, nem muito barulho fez. A merendeira olhou para os olhos da bichinha, lhe pediu perdão, disse que a causa era justa e troc, torceu seu pescocinho com a prática que uma boa cozinheira de sítio deve ter. E fez com ela a melhor galinhada que aquele povo já comeu na vida. 

Estiveram presentes no almoço todas as crianças que ali puderam chegar, além do padre, da professora, da costureira, do farmacêutico, do dono do jornal da cidade e... da mulher do prefeito, que solidária à merendeira, não recusou o convite. Um "milagre dos pães galináceo parece ter acontecido", disse o padre. Todos comeram muito bem e as sobras ainda foram distribuídas a quem não tinha conseguido chegar para o banquete.

À noite, enquanto a moça era levada para a prisão da capital, a esposa perguntou para o prefeito se ele achava justo tirar a merenda das crianças e a liberdade da merendeira. Ele deu os ombros, sem sequer responder. A mulher então entregou para ele um envelope que a cozinheira havia pedido para levar. Julgando ser um pedido de perdão, o prefeito deu uma risadinha, olhou para a esposa, e antes de abrir o envelope ainda fez um comentário irônico do tipo viu como funciona a minha autoridade? E quando abriu, caiu duro para trás, num infarto fulminante. No envelope, estavam dispostas uma a uma, bem limpinhas, todas as penas brancas e alaranjadas de Teteia.

FIM

Recadinho importante com receitas

Na minha infância, eu adorava o arroz com frango que minha tia fazia, quando morávamos no interior de São Paulo. Os pedaços generosos da carne vinham sempre douradinhos, com pequenos grãos do arroz neles grudados. O sabor do arroz era maravilhoso e hoje em dia, mesmo não consumindo mais proteína animal, a memória afetiva deste prato me acompanha com muito carinho. Por isso, quero compartilhar a receita de uma galinhada com vocês. E, como sou vegana, não vou dizer que faço "galinhada de legumes" porque não faz sentido. Eu faço é uma "Legumada", que não é uma galinhada e nem uma caponata, mas que também fica uma delícia.

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