MARIA ISABEL

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Irene estava muito cansada, mas já era hora. De olhos semicerrados, conseguia prever a invasão da luz do Sol anunciando o fim da madrugada e a hora certa da lida. No entanto, queria ficar mais um pouco na cama, ainda que a voz forte e autoritária do marido já a pegasse de sobressaltos. Do quintal, entre cusparadas, gemidos do espreguiçar em gestos bruscos e gritos com a cachorrada que acordava e vinha fazer festa, o homem já avisava que ia voltar para o almoço, que tratasse de fazer boa boia, pois vinha com a peonada. Queria arroz, feijão, carne seca, angu, farofa e banana frita.

Ele era assim, escolhia o cardápio, o horário da refeição e os convidados. Irene já estava acostumada a essa mania dele. Cozinhar não era o problema, aprendera desde menina a lidar com tachos ferventes, facão, conchas e colheres, lenha no fogão a queimar-lhe a barriga, dedos machucados dos cortes finos das ervas de temperar, alho e sal em abundância, pisados na cumbuca com o pilão até se tornar pasta cheirosa. Com tudo isso ela sabia lidar.

A única coisa com a qual não se conformava era a maneira como o marido se apoderava e dava nome às comidas, tornando-as posse de quem ele dedicava aquele alimento. Se havia um cacho de banana que ele tinha decidido dar para o compadre Zé Antônio, a fruta já não se chamava mais banana e sim "compadre Zé Antônio". E ai das crianças que pegassem umazinha "Zé Antônio" para matar a fome ou a vontade. O couro comia solto. Ela ficava louca com isso, mas reclamava baixinho, pois também o temia. "Essa canjica chama-se Ronaldo da Conceição. É meu amigo, que vai passar aqui para pegar. Não dê nenhuma colherada pros meninos, entendeu?", gritava autoritário. "Esse charque tem um nome, não se esqueça, é Altamiro, convidei ele para jantar aqui em casa. Ninguém vai comer um pedaço sequer até meu amigo chegar, ouviu bem?".

Sim, ela ouvia, os filhos também. Não havia como deixar de escutar tal ordem. E assim, desgostosa, Irene cozinhava para o marido e convidados, tentando sempre esconder alguma coisa para que seus filhos pudessem comer melhor. Guardava um caldo de carne, que seria enriquecido com uma farinha num gostoso pirão, a gordura da galinha que haveria de temperar um arroz, escondia gomos de mandioca para misturar com melado de cana, sempre pensando em trazer mais sustância para a filharada. "Esses meninos já vivem no bom e no melhor. Eu trabalho de sol a sol pra dar guarita pra eles, que tratem de crescer rápido, comecem a trabalhar pra poder comer bem".

Era essa a filosofia dele. O homem simplesmente não dividia a comida boa com os filhos, para agradar olhos e estômago de amigos, compadres, alguém que conhecera no armazém, um viajante que passasse por ali ou um chegante de repente, vindo da estrada poeirenta.

Mas aconteceu que um dia duas filhas de Irene ficaram doentes ao mesmo tempo. Isabel e Maria falavam de tontura, tinham febre e um amarelão cobria a pele já pálida de ambas. A benzedeira foi chamada. "É lombriga", sentenciou a mulher, com total confiança e muita experiência nas coisas dessa vida de meu Deus. Sem forças para se levantarem da rede, as duas meninas espichavam os olhos amarelados para a mãe. "To cum vontade de nada não, maínha", repetiam, com medo de contrariar o pai.

A benzedeira insistia no diagnóstico, que Irene tratasse de descobrir o que elas tinham visto que não puderam comer. "Essas meninas tão é aguada e ninguém vai melhorar se não comer o que o corpo e a alma tá desejando", repetia a velha conhecedora de ervas e segredos do mundo. A mãe começou a pegar na cozinha o que poderia ter provocado o mal-estar das crianças, banana, laranja, pão, frango, farofa... pequenos potes com colheradas de alimentos eram levados para que Maria e Isabel assentissem. Até que uma delas olhou comprido para um pedaço de carne de sol pendurado acima do fogão de lenha. Era aquele o desejo das meninas, Irene não teve dúvidas.

Imediatamente, pegou a carne e cortou em cubos. Colocou na água fria para dessalgar, e passou a picar todos os temperos que tinha em sua cozinha, alho, cebola, pimentões, coentro, salsinha, cebolinha... Enquanto preparava a carne, lembrou-se que o marido havia avisado que dali a dois dias um amigo viria almoçar e ele ia querer aquela carne feita com mandioca. Ela balançou os ombros. "Não desta vez, marido". Com a carne na panela bem temperada e refogada, ela misturou um punhado de arroz, que logo ficou cozido com todos aqueles sabores nele incorporados. Ela então colocou generosas colheradas em duas pequenas gamelas e levou para as filhas, que comeram até se lambuzar. Os outros filhos também foram chamados para comer do arroz, que parecia se multiplicar no tacho.

Até que o marido chegou e, intrigado com o aroma de comida que desconhecia, invadiu a cozinha, perguntando para a mulher o que ela tinha cozinhado. E ela, sem pestanejar, enfrentando o homem, respondeu: "Arroz Maria Isabel".

Cara leitora e caro leitor

O Arroz Maria Isabel é uma iguaria típica do Piauí, onde também é conhecido como Arroz de Pinicado. Há variações do prato na região Centro-Oeste do Brasil, principalmente em Cuiabá, Mato Grosso, onde é servido com farofa de banana, mas traz o mesmo nome. Já no Sul do País, o arroz carreteiro tem muita semelhança com o Maria Isabel, principalmente quanto aos ingredientes e maneira de fazer.

E se você ficou com água na boca, vá para o próximo capítulo, onde conto a origem do prato.

E, como quem me acompanha aqui sabe, sempre trago duas receitas, a versão com proteína animal e a versão vegana.

Clique no próximo capítulo, anote as receitas e bom apetite.

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